Trabalhar voluntariamente em outro continente, sem condições básicas de saneamento e alimentação, e exposto a doenças infecciosas como o sarampo. Esse foi o desafio encarado por um casal de médicos da cidade de Feira de Santana, a cerca de 100 km de Salvador, que decidiu passar 19 dias em Madagascar, na África, cuidando de pessoas carentes.
O chamado da nutróloga Anne Stephany Reis e do médico neurologista Rui Nei de Araújo, veio após um congresso de medicina em 2018. Na ocasião, Rui conheceu o trabalho voluntário de uma médica brasileira que atua na cidade de Ambovombe, no país africano.
“Ela, que atende a uma população inteira, apresentou o projeto para ele. Nós ficamos super encantados, e chegamos a nos planejar para ir em março [deste ano]. Só que em um momento, a gente acreditou que não era a hora de ir, porque é uma viagem com custo alto”, relatou Anne.
No dia 17 de janeiro, o casal então decidiu que não ia viajar. “Mandamos um áudio para ela, para nos justificar, mas ela nem viu. Depois, ela perguntou se a gente ia lá e questionou se a gente estava sabendo do que acontecia na cidade. Como não sabíamos, ela mandou um vídeo pedindo ajuda, porque era uma epidemia de sarampo. Ela era a única médica cuidando de mais ou menos 450 crianças. Tinha muita gente morrendo, porque ela não dava conta sozinha”, lembrou Anne.
“Quando ela falou isso, a gente ficou em choque, chorando intensamente. A gente sentiu um chamado de Deus muito grande. Aí a gente olhou um para o outro e decidiu que era o momento de ir”
Com a decisão de embarcar, o casal teve poucos dias para arrumar a documentação, passagens, organizar escala de trabalho e ajeitar questões de vacinação. Além disso, Anne e Rui também juntaram medicações para levar para Madagascar.
“Foram dois dias para organizar tudo, mas as coisas fluíram super bem. Meu marido conseguiu fazer as trocas de plantão. As coisas pareciam que eram para acontecer, porque não houve nenhum tipo de dificuldade. Até para resolver a carteira de vacinação foi fácil”, lembra ela.
Anne e Rui embarcaram no dia 20 de janeiro, mais de um mês antes da data que haviam planejado da primeira vez. As facilidades que tiveram nos trâmites da viagem foram substituídas por alguns obstáculos, que encontraram quando precisaram embarcar com as medicações.
“Levamos duas malas com muitos remédios, que conseguimos com doações. Com as complicações de sarampo, a pessoa pode sangrar até morrer. Lá, eles estavam sem remédio para controlar esse sangramento, então era muito importante. A dificuldade maior com os remédios foi quando chegamos na África, porque eles queriam detalhes das medicações, até saber que era trabalho voluntário. Aí as pessoas ficavam mais sensibilizadas”
“Eles [funcionários dos aeroportos] viam a gente de maneira agressiva, mas quando sabiam que éramos voluntários, ficavam mais sensíveis. Essa sensibilização das pessoas, tanto aqui no Brasil quanto lá, é muito tocante”
Ao chegarem em Ambovombe, encontraram uma vivência completamente diferente da que tinham em Feira de Santana.
“É muito chocante, uma realidade que a gente não consegue imaginar, por mais que tente. Na época da faculdade, a gente vivencia algumas situações que não chegam nem perto. Quando a gente vê que o que as pessoas estão comendo, que não é algo que a gente come naturalmente, e que eles comem com felicidade, a gente passa a repensar todas as vezes que criticou a comida na mesa”, diz Anne.
“Encarar aquela realidade muda nossos pensamentos e sentimentos. As fotos que nós vemos não retratam a realidade do que a gente vivencia ali. Aqui a gente tem tudo chuveiro, água limpa, energia. Lá há racionamento de recursos, e a comida é vegetariana porque as condições da carne não oferecem segurança para se alimentar”.
Com o trabalho voluntário, Anne conta que ela e Rui se dispuseram a fazer de tudo. “A gente não ganha nada e paga todos os custos. Quando chegamos lá, somos escalados pra fazer o que é mais importante na hora. No primeiro momento, por exemplo, ficamos na equipe de atendimento e encaminhávamos os pacientes para a clinica que funcionava em um hospital”.
De toda a experiência que tiveram, a nutróloga fala o que ficou mais marcado para os dois: a gratidão dos pacientes.
“Sem dúvida, é nosso maior ensinamento. Eles são extremamente gratos a tudo, a todas as manifestações de amor e carinho. A fé e a gratidão deles a Deus também é algo impressionante. Eu poderia dizer que eles têm mais fé do que a gente aqui. A alegria das crianças é encantadora”.
“Os olhares falam muito. É um olhar que diz tudo o que o coração sente. Um olhar que fala o quanto eles são gratos por viver um dia de cada vez”
Depois de tudo o que passou na viagem, Anne afirma que quer voltar para outro local do continente africano, pra ajudar outras pessoas.
“O que eu fiz foi apenas assistencialismo. O que a gente faz é dar um dia a mais a cada um deles. Nosso objetivo agora é juntar dinheiro para conseguir voltar lá. Queremos ir agora para uma cidade que é campo de refugiados da Guerra do Congo”, conta.
Após retornar ao Brasil, no dia 8 de fevereiro, Anne diz que o casal tem recebido muitos “parabéns”, mas destaca que, se pudesse, trocaria por ajuda para pessoas e animais tanto na África, como em outros locais do mudo.
“Os parabéns são muito bons, fortalecem nosso coração. Mas o objetivo maior não é esse. O objetivo é estimular e criar no coração das pessoas o sentimento de: ‘Será que eu também posso fazer algo?’. Às vezes, a gente não vai lá na África fazer, mas a gente pode fazer aqui perto de nós. Enquanto eu fui lá, tem uma pessoa aqui fazendo alguma coisa na periferia, já tem outro que cuida de crianças carentes, já tem outro que cuida de animais nas ruas”, pontua.
“Eu realmente troco todo os parabéns e todo o elogio, para tocar corações das pessoas, para que realmente trabalhem em serviço de Cristo e levem mais amor ao mundo. Porque eu realmente acredito que exista um mundo melhor, que pode existir um mundo melhor se todos nós trabalharmos juntos”