Depois de retornar de Brasília ao Capão, na Chapada Diamantina, intitulado um dos maiores médicos brasileiros pelo Ministério da Saúde, Áureo encontrou o lugar num alvoroço. Então, em meio ao falatório, um cachorro ergueu uma das patas e mijou sobre o doutor. “Não se deixe levar pelo orgulho”, disse um nativo, como se para explicar um acontecimento aparentemente banal. Dessas miudezas do cotidiano, das relações e da natureza, Áureo acredita que nasce a medicina.
No quintal de casa, no distrito do município de Palmeiras, Áureo Augusto Caribé, o Doutor Áureo, 66, tem um rio só para si. Dos banhos matinais diários, parte para a Unidade de Saúde da Família de Caeté-Açú, o espaço onde se projetou como uma espécie de autoridade local. E onde exercita e aprende aquilo que acredita ser o verdadeiro significado da medicina. Para ele, pode estar tanto num abraço quanto num medicamento. Num canal do Youtube, Áureo divide conhecimentos.
De tanto acreditar na amplitude da cura, Áureo, que tem cinco filhos, faz questão de encorajar o autoconhecimento. “É o erro que faz com que depois a gente cresça”, diz. O que não significa persistir no equívoco. “A gente acaba fazendo com que nosso corpo se subordine”, acredita. O preço são problemas como a Diabetes, que pode estar ligado a doenças como o Alzheimer. Os algozes seriam nossas próprias escolhas, como alimentação e hábitos insustentáveis.
O primeiro baiano condecorado com a mais alta honraria dada pelo Ministério da Saúde a um médico, a de Comendador da Ordem do Mérito, em 2017, vive para aprender novas formas de tratar. Por isso, não se esquiva da defesa de uma saúde em que gratuidade seja sinônimo de qualidade.
“O SUS é uma coisa maravilhosa, desgraçadamente é maltratado pelos poderes constituídos”, opina o médico, ainda bastante jovem quando chegou ao Capão, no final da década de 80, depois de uma temporada no Chile para aprender métodos naturistas.
O médico também vê medicina na arte e vice-versa. No início de julho, trocou o Capão por Salvador, sua terra natal, para expor suas pinturas sobre os corpos como elementos míticos e vitais. A exposição Corpos, Atualizações Míticas fica no Teatro Gamboa Nova, no Largo dos Aflitos, até quarta-feira (31). Reservou, na passagem, um tempo para explicar como um jovem nascido e criado no bairro do Uruguai virou o Doutor Áureo do Capão. Também comentou a glamourização da medicina, a popularização do antes isolado Capão e disse estar impressionado com a disseminação da maconha. Tudo com a calma de quem vê a medicina no cotidiano. Confira a entrevista:
Daí até chegar à Universidade Federal da Bahia, não houve nenhuma dúvida?
Nunca tive nenhuma dúvida. Com 17 anos fiz vestibular. Só existia Baiana e Federal. Eu fiz nas duas. Naquela época, poderiam ter três opções, as três foram medicina, e eu passei. Hoje, tem mais universidades, mas hoje é mais punk.
“Mais punk” em que sentido?
Hoje é gente para dar de pau no mundo (risos). Para querer fazer coisas, querer estudar medicina. É bem verdade que na minha turma tinham 250 pessoas.
E como é a sua rotina? Muito punk também?
Normalmente acordo bem cedo, 5h30, 6h. Quando eu acordo 7h é porque eu acordei muito tarde. Tomo banho de rio, depois começo a comer, depois vou para o posto, fico o dia inteiro lá. Venho almoçar em casa. Quando há tempo, ainda tomo outro banho de rio, no fundo de minha casa. É bem mais legal do que aqui [Salvador].
Aí, de tarde, quando termino no posto, tenho várias opções. Ou tenho alguma reunião, ou vou para casa, onde faço alguns trabalhos, ou vou pintar, ou para oficina fazer molduras de quadros, móveis. Mas, em geral, eu tenho que preparar coisas frequentemente para o próprio posto. Porque o posto tem muita atividade Faz livretos, por exemplo, para distribuir para a população. Eu faço a programação, o visual…
Depois de tantos anos, e de toda essa experiência no Capão, o senhor consegue responder o que é medicina?
Medicina… [Silêncio de 15 segundos]. Primeiro, é difícil responder essa pergunta, porque medicina é uma coisa muito ampla. Tremendamente ampla. Por exemplo, acredito que quando uma mãe acaricia seu filho e o escuta numa situação difícil, ela está fazendo medicina. Eu acredito que quando um amigo abraça o outro, põe as mãos no ombro dele e diz “vamos, lá, meu velho”, ele está fazendo medicina. E também há medicina quando o médico recebe uma pessoa com queixas e consegue que a pessoa saia dali com uma sensação de esperança e nem sempre com uma receita na mão.
Também pode ser quando a pessoa é atendida e recebe a receita. Medicina é cuidar da saúde. E essa tarefa é multidisciplinar. Envolve políticos, engenheiros, arquitetos, médicos, enfermeiros. Envolve o motorista de ônibus. Eu acho uma pena que saúde e educação não sejam vistas da mesma maneira. Porque também a educação é a mesma coisa.
Educação é a mesma coisa que medicina?
Isso. Bom, uma pesquisa feita pelo Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, vinculado ao Ministério da Economia], há alguns anos, mostrou que a forma mais barata e eficaz de reduzir a mortalidade infantil é alfabetizar as mães. Porra, velho, pense aí que coisa maravilhosa isso. Quer dizer, a gente pensa: como vamos acabar com a mortalidade infantil: ‘ah, com saneamento básico, com remédios, remédio para vermes, mil coisas’. Mil coisas que são ótimas. Mas a mais barata e eficaz é alfabetizar as mães. Então… educação é saúde, e saúde é educação.
E como o senhor chegou ao Capão lá atrás, na década de 80?
Foi um amigo que me falou. Um amigo dele tinha ido, ele falou para mim e aí eu fui e não aguentei. Eu fui visitar, mas já tive a sensação de que moraria lá. Quando cheguei, a sensação se transformou em absoluta certeza. Aí pronto. Fui visitar na Paixão de Cristo, na Semana Santa, naquele mesmo ano, na passagem do ano, eu me mudei para lá. A primeira visita tem 37 anos.
Eu fui visitar a clínica no Chile, porque tive um problema de saúde durante muitos anos na minha vida, que me provocava diarreia, muco e sangue nas fezes, algo muito desagradável. Me curei com práticas de medicina natural. Frequentei um ano a clínica de Manuel Lezaeta [médico naturista], em Santiago, para me aperfeiçoar, voltei e fiz meu consultório. O problema chama-se retocolite.
E depois de finalmente se mudar, nenhum desses nativos estranhou suas perspectivas sobre medicina?
Bom, a dificuldade que teve é porque era uma população muito e muito isolada. O Capão de hoje é muito diferente do que era. Era um lugar extremamente isolado. Então, eles viram chegar um cara de cabelo comprido, porque eu usava cabelo comprido, e eles acharam aquilo meio estranho. Eles achavam estranho que um médico quisesse morar lá, eles comentavam comigo.
Quem morava lá no Capão?
Só o povo nativo, única e exclusivamente. Eles achavam esquisito que alguém quisesse morar lá, porque era extremamente pobre. Aos poucos, foi chegando gente de fora. Primeiro, meus amigos, depois os amigos dos meus amigos e por aí vai. Acabou que vai gente do mundo inteiro. O povo do Capão tem uma peculiaridade legal, eles absorvem com facilidade coisas que acham legal. Vários hábitos, como cuidado com a natureza, fazer boas pousadas, eles pegaram rapidamente. E rejeitam, ou não estão nem aí, para coisas que não interessam.
Hoje, a realidade do Capão é outra, com atração cada vez maior de turistas. Numa publicação, o senhor falou sobre o consumo de drogas e a popularização do antigo local paradisíaco. Como enxerga esses dois movimentos: o da superpopularização e da presença das drogas?
Oh, eu acho massa que vá gente ‘para desgrama’ para o Capão. Porque eu vi a situação de pobreza daquele lugar. Hoje, tem trabalho para todo mundo. Vem gente de todo canto trabalhar no Capão. É um movimento espantoso de gente que vai, inacreditável.
Vivi no Capão 10 anos sem energia elétrica. Tinham coisas legais, mas também coisas horríveis, como o povo se sentir pouco, se sentir sem reconhecimento e não reconhecer-se a si mesmo como pessoas maravilhosas e inteligentes que são. Eles não se viam assim. Injustiças sociais inacreditáveis. O patrão chegava, ficava na casa de uma pessoa, não pagava o salário, não dava férias. E quando ia na casa, comia e não pagava nada. O cara ainda ficava grato por aquela ‘ridiculeza’ de pagamento.
A escola era abandonada totalmente. Era péssimo, era muita coisa ruim, se for falar tudo. As coisas boas eram ir para casa da pessoa, ficar conversando, havia um sentido de comunidade. A pessoa acendia fogueira, os vizinhos conversam, era mais calmo, uma coisa vinha depois da outra. Hoje, existe mais esse apuro que a televisão traz. Como se sempre tivéssemos algo a fazer. Uma espécie de agonia que não existia antes. No entanto, as pessoas hoje dispõem de recursos, podem viver melhor, tem dinheiro para comprar. Tinha gente que andava descalço.
E o uso de drogas?
Rapaz, eu estou impressionado com a quantidade de maconha que se fuma em tudo quanto é canto que eu vou. Em todas as cidades e lugares. Ficou uma coisa muito disseminada. Eu não concordo com isso. Eu acho que é um desrespeito à própria planta. A maconha é uma planta de poder, tradicionalmente usada com uma finalidade mística, religiosa, xamânica, é um desrespeito. A não ser quando há indicação psiquiátrica, médica. Outras drogas me preocupam mais ainda. Cocaína, por exemplo, crack nem se fala. No entanto, existe frequentemente uma associação do Capão a drogas. É equivocado, porque há cidades ao redor com muito mais concentração de drogas, e muito mais pesadas e associadas à miséria. Claro, muitos que vieram de fora são maconheiros. Mas, assim, eu não vejo que se use mais isso no Capão do que em outros lugares. Claro que pode ser que eu não faça parte das rodas [risos].
Mas, de maneira geral, o senhor acha que há respeito? São comuns publicações que mostram trilhas lotadas, lixo em alguns espaços mais visitados…
Nem todos, mas o padrão é muito mais de respeito do que nas praias de Salvador. O Capão e a Chapada têm sido associados ao respeito à ecologia. De tanto ouvirem falar isso, as pessoas já vão com uma ideia mais legal.
E de ponto de vista da alimentação, Doutor Áureo. Muita coisa mudou?
O Vale do Capão tem um consumo de legumes completamente diferente. Quando eu cheguei lá, não tinha feira. Hoje, é uma feira quinta e domingo, além das quitandas. Isso significa que o consumo é inacreditável. A população do Capão se orgulha de comer saladas. Óbvio que não são todos. No entanto, rapaz, um refrigerante é muito barato. É muito tentador comprar um refrigerante por um preço ridículo e deixar os filhos felizes. Também, aquele doce todo vicia o paladar e pronto. Aquele negócio que parece um isopor colorido que é saudável feito a ‘desgrama’ [risos]. Rapaz, as crianças amam aquilo.
O lance dos refrigerantes é algo que o senhor sempre cita como um grande problema. O consumo é relacionado a problemas como o Diabetes e que causariam doenças como Alzheimer. Ao que parece, você acredita num caminho do esquecimento?
Que legal, muito boa metáfora. Porque ocorre um esquecimento de nós mesmos, dos nossos corpos, a gente acaba fazendo com que nosso corpo se subordine, se submeta ao fato de que nós esquecemos que temos um corpo que necessita de certas condições para funcionar. Quando ele falha, a gente se reta com ele e vai para o médico e espera do médico uma medicação miraculosa que cure o problema.
A OMS [Organização Mundial da Saúde] já considera a maior causa de diabetes tipo 2 os refrigerantes. Isso é muito chocante. E eu vejo os pais levando garrafas e garrafas de refrigerantes. Eles condenam os filhos. Há um esquecimento muito simples, de ler os rótulos. Nós deveríamos ler os rótulos de tudo que comemos, pois pelo menos isso ainda temos. Os achocolatados, por exemplo, a primeira coisa que tem é açúcar. Significa que não é achocolatado, mas açucarado. Temos que ler.
E qual é o tratamento do esquecimento?
Fazer exercício de se lembrar [risos].
E como levar todas essas concepções a um posto de saúde tradicional?
A equipe do posto é extraordinária. O posto é referência no estado da Bahia. Todo mundo é trabalhador, corre atrás, todo mundo acredita muito em educação para a saúde, então normalmente é uma coisa bem harmônica.
Temos uma reunião de equipe por semana, em que tudo é decidido desde a enfermeira chefe do posto à pessoa que faz a limpeza, e todos têm o mesmo peso de voto. É uma equipe muito legal. Então, nós temos uma coisa de harmonia muito forte.
O que temos, também, muito, é excesso de trabalho. Porque, por exemplo, fazemos atividades extra-ambulatoriais, como Dia do Homem, com concurso de sinuca, com palestras intermediárias. No final do ano passado, fizemos uma exposição. Essas coisas acabam enchendo.
Mas existe preferência por algum tipo de medicamento? Por exemplo, os naturais ao invés dos alopáticos?
Não há preferência. A ideia é integração, integratividade. Uma vez que atendemos à pessoa e sabemos de suas queixas, orientamos utilizando aquilo que dispomos. Na USF de Caeté-Açu, dispomos de alopatia, naturopatia, ventosas, acupuntura, auriculoterapia, nutrologia e terapia Ayurveda, Thetahealing, massoterapia, hipnose terapêutica, Reike, entre outros sistemas que são oferecidos por voluntários residentes no Vale do Capão (nossos vizinhos). Conforme o quadro encaminhamos para os demais profissionais.
Muitas pessoas iniciam uso de chás e outros fitoterápicos sem recomendação médica. O senhor acha que a adoção de tratamentos naturais tem ocorrido a partir da devida recomendação médica ou de maneira mais autodidata?
Não devemos nos esquecer que a fitoterapia é parte do cabedal de conhecimento popular da humanidade. Assim, devemos ter respeito total pelo uso popular. No entanto, estamos vivendo um grave momento de desenraizamento no qual perdemos o tino quanto às nossas relações com o mundo natural em geral e mais especificamente na relação com os demais seres vivos, inclusive as plantas.
O povo antigo bebia da tradição (poucos hoje em dia acessam a tradição) e assim aprendiam como, quando, onde e por que usar. Ademais emprestavam alma aos elementos da natureza. Isso é visto como uma superstição, mas no mínimo essa postura implica em cuidado e respeito. Hoje tendemos a usar o que ouvimos de vizinhos, sem cotejar com o uso tradicional, sem o devido cuidado e respeito. Como não contamos com a tradição, nem com o respeito acabamos usando de forma inadequada com consequências não muito legais. As plantas contêm substâncias químicas que tanto são úteis como, em excesso, podem prejudicar.
Queria começar nossa conversa no final dos anos 70, quando, ainda uma criança de 6 anos, o senhor, que foi diagnosticado com um tipo de reumatismo, disse que seria médico. Como foi isso?
Minha mãe me contou uma história para me mostrar como eu queria ser médico. Porque me disse que com 6 anos ela me levou no médico porque eu estava com reumatismo, e aí o médico, quando nos sentamos, perguntou “o que ele tem?”. E eu respondi: “eu tenho dores articulares”. Aí ele disse: “e você sabe o que é articulação”. Eu respondi: “sei sim, e sei que são móveis, imóveis e semimóveis e eu vou ser médico” (risos).
Não tenho ideia. Inclusive, na família, em nenhuma das partes, tem médicos. Meu pai era militar de baixa patente, era cabo ou sargento do exército, e minha mãe era do lar. Eu morava no bairro do Uruguai. Nasci e vivi lá boa parte. Minha infância foi muito massa, muito legal, toda chuva que tinha a rua inundava, era muito gostoso a gente ficar brincando com a onda que os ônibus levantavam. A gente pegava mamona para fazer guerra de mamona. Essas coisas que ninguém faz senão morre, eu fiz tudo isso (risos).
Meus pais tinham um pacto pela família, eles tinham uma vida muito harmônica. Eu tive pais maravilhosos, extraordinários, não vou conseguir elogiar eles o suficiente. É impossível. Primeiro, a harmonia que havia entre eles. Depois, eles realmente se dedicavam aos filhos.Tiveram cinco filhos, dois arquitetos, uma faleceu, um trabalhou na Petrobras e é advogado.
Daí até chegar à Universidade Federal da Bahia, não houve nenhuma dúvida?
Nunca tive nenhuma dúvida. Com 17 anos fiz vestibular. Só existia Baiana e Federal. Eu fiz nas duas. Naquela época, poderiam ter três opções, as três foram medicina, e eu passei. Hoje, tem mais universidades, mas hoje é mais punk.
“Mais punk” em que sentido?
Hoje é gente para dar de pau no mundo (risos). Para querer fazer coisas, querer estudar medicina. É bem verdade que na minha turma tinham 250 pessoas.
E como é a sua rotina? Muito punk também?
Normalmente acordo bem cedo, 5h30, 6h. Quando eu acordo 7h é porque eu acordei muito tarde. Tomo banho de rio, depois começo a comer, depois vou para o posto, fico o dia inteiro lá. Venho almoçar em casa. Quando há tempo, ainda tomo outro banho de rio, no fundo de minha casa. É bem mais legal do que aqui [Salvador].
Aí, de tarde, quando termino no posto, tenho várias opções. Ou tenho alguma reunião, ou vou para casa, onde faço alguns trabalhos, ou vou pintar, ou para oficina fazer molduras de quadros, móveis. Mas, em geral, eu tenho que preparar coisas frequentemente para o próprio posto. Porque o posto tem muita atividade Faz livretos, por exemplo, para distribuir para a população. Eu faço a programação, o visual…
Depois de tantos anos, e de toda essa experiência no Capão, o senhor consegue responder o que é medicina?
Medicina… [Silêncio de 15 segundos]. Primeiro, é difícil responder essa pergunta, porque medicina é uma coisa muito ampla. Tremendamente ampla. Por exemplo, acredito que quando uma mãe acaricia seu filho e o escuta numa situação difícil, ela está fazendo medicina. Eu acredito que quando um amigo abraça o outro, põe as mãos no ombro dele e diz “vamos, lá, meu velho”, ele está fazendo medicina. E também há medicina quando o médico recebe uma pessoa com queixas e consegue que a pessoa saia dali com uma sensação de esperança e nem sempre com uma receita na mão.
Também pode ser quando a pessoa é atendida e recebe a receita. Medicina é cuidar da saúde. E essa tarefa é multidisciplinar. Envolve políticos, engenheiros, arquitetos, médicos, enfermeiros. Envolve o motorista de ônibus. Eu acho uma pena que saúde e educação não sejam vistas da mesma maneira. Porque também a educação é a mesma coisa.
Educação é a mesma coisa que medicina?
Isso. Bom, uma pesquisa feita pelo Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, vinculado ao Ministério da Economia], há alguns anos, mostrou que a forma mais barata e eficaz de reduzir a mortalidade infantil é alfabetizar as mães. Porra, velho, pense aí que coisa maravilhosa isso. Quer dizer, a gente pensa: como vamos acabar com a mortalidade infantil: ‘ah, com saneamento básico, com remédios, remédio para vermes, mil coisas’. Mil coisas que são ótimas. Mas a mais barata e eficaz é alfabetizar as mães. Então… educação é saúde, e saúde é educação.
E como o senhor chegou ao Capão lá atrás, na década de 80?
Foi um amigo que me falou. Um amigo dele tinha ido, ele falou para mim e aí eu fui e não aguentei. Eu fui visitar, mas já tive a sensação de que moraria lá. Quando cheguei, a sensação se transformou em absoluta certeza. Aí pronto. Fui visitar na Paixão de Cristo, na Semana Santa, naquele mesmo ano, na passagem do ano, eu me mudei para lá. A primeira visita tem 37 anos.
Eu fui visitar a clínica no Chile, porque tive um problema de saúde durante muitos anos na minha vida, que me provocava diarreia, muco e sangue nas fezes, algo muito desagradável. Me curei com práticas de medicina natural. Frequentei um ano a clínica de Manuel Lezaeta [médico naturista], em Santiago, para me aperfeiçoar, voltei e fiz meu consultório. O problema chama-se retocolite.
E depois de finalmente se mudar, nenhum desses nativos estranhou suas perspectivas sobre medicina?
Bom, a dificuldade que teve é porque era uma população muito e muito isolada. O Capão de hoje é muito diferente do que era. Era um lugar extremamente isolado. Então, eles viram chegar um cara de cabelo comprido, porque eu usava cabelo comprido, e eles acharam aquilo meio estranho. Eles achavam estranho que um médico quisesse morar lá, eles comentavam comigo.
Quem morava lá no Capão?
Só o povo nativo, única e exclusivamente. Eles achavam esquisito que alguém quisesse morar lá, porque era extremamente pobre. Aos poucos, foi chegando gente de fora. Primeiro, meus amigos, depois os amigos dos meus amigos e por aí vai. Acabou que vai gente do mundo inteiro. O povo do Capão tem uma peculiaridade legal, eles absorvem com facilidade coisas que acham legal. Vários hábitos, como cuidado com a natureza, fazer boas pousadas, eles pegaram rapidamente. E rejeitam, ou não estão nem aí, para coisas que não interessam.
Hoje, a realidade do Capão é outra, com atração cada vez maior de turistas. Numa publicação, o senhor falou sobre o consumo de drogas e a popularização do antigo local paradisíaco. Como enxerga esses dois movimentos: o da superpopularização e da presença das drogas?
Oh, eu acho massa que vá gente ‘para desgrama’ para o Capão. Porque eu vi a situação de pobreza daquele lugar. Hoje, tem trabalho para todo mundo. Vem gente de todo canto trabalhar no Capão. É um movimento espantoso de gente que vai, inacreditável.
Vivi no Capão 10 anos sem energia elétrica. Tinham coisas legais, mas também coisas horríveis, como o povo se sentir pouco, se sentir sem reconhecimento e não reconhecer-se a si mesmo como pessoas maravilhosas e inteligentes que são. Eles não se viam assim. Injustiças sociais inacreditáveis. O patrão chegava, ficava na casa de uma pessoa, não pagava o salário, não dava férias. E quando ia na casa, comia e não pagava nada. O cara ainda ficava grato por aquela ‘ridiculeza’ de pagamento.
A escola era abandonada totalmente. Era péssimo, era muita coisa ruim, se for falar tudo. As coisas boas eram ir para casa da pessoa, ficar conversando, havia um sentido de comunidade. A pessoa acendia fogueira, os vizinhos conversam, era mais calmo, uma coisa vinha depois da outra. Hoje, existe mais esse apuro que a televisão traz. Como se sempre tivéssemos algo a fazer. Uma espécie de agonia que não existia antes. No entanto, as pessoas hoje dispõem de recursos, podem viver melhor, tem dinheiro para comprar. Tinha gente que andava descalço.
E o uso de drogas?
Rapaz, eu estou impressionado com a quantidade de maconha que se fuma em tudo quanto é canto que eu vou. Em todas as cidades e lugares. Ficou uma coisa muito disseminada. Eu não concordo com isso. Eu acho que é um desrespeito à própria planta. A maconha é uma planta de poder, tradicionalmente usada com uma finalidade mística, religiosa, xamânica, é um desrespeito. A não ser quando há indicação psiquiátrica, médica. Outras drogas me preocupam mais ainda. Cocaína, por exemplo, crack nem se fala. No entanto, existe frequentemente uma associação do Capão a drogas. É equivocado, porque há cidades ao redor com muito mais concentração de drogas, e muito mais pesadas e associadas à miséria. Claro, muitos que vieram de fora são maconheiros. Mas, assim, eu não vejo que se use mais isso no Capão do que em outros lugares. Claro que pode ser que eu não faça parte das rodas [risos].
Mas, de maneira geral, o senhor acha que há respeito? São comuns publicações que mostram trilhas lotadas, lixo em alguns espaços mais visitados…
Nem todos, mas o padrão é muito mais de respeito do que nas praias de Salvador. O Capão e a Chapada têm sido associados ao respeito à ecologia. De tanto ouvirem falar isso, as pessoas já vão com uma ideia mais legal.
E de ponto de vista da alimentação, Doutor Áureo. Muita coisa mudou?
O Vale do Capão tem um consumo de legumes completamente diferente. Quando eu cheguei lá, não tinha feira. Hoje, é uma feira quinta e domingo, além das quitandas. Isso significa que o consumo é inacreditável. A população do Capão se orgulha de comer saladas. Óbvio que não são todos. No entanto, rapaz, um refrigerante é muito barato. É muito tentador comprar um refrigerante por um preço ridículo e deixar os filhos felizes. Também, aquele doce todo vicia o paladar e pronto. Aquele negócio que parece um isopor colorido que é saudável feito a ‘desgrama’ [risos]. Rapaz, as crianças amam aquilo.
O lance dos refrigerantes é algo que o senhor sempre cita como um grande problema. O consumo é relacionado a problemas como o Diabetes e que causariam doenças como Alzheimer. Ao que parece, você acredita num caminho do esquecimento?
Que legal, muito boa metáfora. Porque ocorre um esquecimento de nós mesmos, dos nossos corpos, a gente acaba fazendo com que nosso corpo se subordine, se submeta ao fato de que nós esquecemos que temos um corpo que necessita de certas condições para funcionar. Quando ele falha, a gente se reta com ele e vai para o médico e espera do médico uma medicação miraculosa que cure o problema.
A OMS [Organização Mundial da Saúde] já considera a maior causa de diabetes tipo 2 os refrigerantes. Isso é muito chocante. E eu vejo os pais levando garrafas e garrafas de refrigerantes. Eles condenam os filhos. Há um esquecimento muito simples, de ler os rótulos. Nós deveríamos ler os rótulos de tudo que comemos, pois pelo menos isso ainda temos. Os achocolatados, por exemplo, a primeira coisa que tem é açúcar. Significa que não é achocolatado, mas açucarado. Temos que ler.
E qual é o tratamento do esquecimento?
Fazer exercício de se lembrar [risos].
E como levar todas essas concepções a um posto de saúde tradicional?
A equipe do posto é extraordinária. O posto é referência no estado da Bahia. Todo mundo é trabalhador, corre atrás, todo mundo acredita muito em educação para a saúde, então normalmente é uma coisa bem harmônica.
Temos uma reunião de equipe por semana, em que tudo é decidido desde a enfermeira chefe do posto à pessoa que faz a limpeza, e todos têm o mesmo peso de voto. É uma equipe muito legal. Então, nós temos uma coisa de harmonia muito forte.
O que temos, também, muito, é excesso de trabalho. Porque, por exemplo, fazemos atividades extra-ambulatoriais, como Dia do Homem, com concurso de sinuca, com palestras intermediárias. No final do ano passado, fizemos uma exposição. Essas coisas acabam enchendo.
Mas existe preferência por algum tipo de medicamento? Por exemplo, os naturais ao invés dos alopáticos?
Não há preferência. A ideia é integração, integratividade. Uma vez que atendemos à pessoa e sabemos de suas queixas, orientamos utilizando aquilo que dispomos. Na USF de Caeté-Açu, dispomos de alopatia, naturopatia, ventosas, acupuntura, auriculoterapia, nutrologia e terapia Ayurveda, Thetahealing, massoterapia, hipnose terapêutica, Reike, entre outros sistemas que são oferecidos por voluntários residentes no Vale do Capão (nossos vizinhos). Conforme o quadro encaminhamos para os demais profissionais.
Muitas pessoas iniciam uso de chás e outros fitoterápicos sem recomendação médica. O senhor acha que a adoção de tratamentos naturais tem ocorrido a partir da devida recomendação médica ou de maneira mais autodidata?
Não devemos nos esquecer que a fitoterapia é parte do cabedal de conhecimento popular da humanidade. Assim, devemos ter respeito total pelo uso popular. No entanto, estamos vivendo um grave momento de desenraizamento no qual perdemos o tino quanto às nossas relações com o mundo natural em geral e mais especificamente na relação com os demais seres vivos, inclusive as plantas.
O povo antigo bebia da tradição (poucos hoje em dia acessam a tradição) e assim aprendiam como, quando, onde e por que usar. Ademais emprestavam alma aos elementos da natureza. Isso é visto como uma superstição, mas no mínimo essa postura implica em cuidado e respeito. Hoje tendemos a usar o que ouvimos de vizinhos, sem cotejar com o uso tradicional, sem o devido cuidado e respeito. Como não contamos com a tradição, nem com o respeito acabamos usando de forma inadequada com consequências não muito legais. As plantas contêm substâncias químicas que tanto são úteis como, em excesso, podem prejudicar.
E essa medicina de hoje é diferente da que o senhor começou a praticar nos anos 80, Doutor Áureo? Acredita, por exemplo, que as motivações para se fazer medicina mudaram? Na sua opinião, há glamourização do curso?
Olhe, tenho uma experiência um pouco restrita nisso. Os colegas com os quais me relacionei na faculdade eram pessoas maravilhosas. Tinha alguns que eu achava que estavam ali por dinheiro. Hoje, o posto de saúde da gente recebe estagiários de medicina e enfermagem, do Brasil inteiro. Ficam de um a três meses. Eu fico muito impressionado como eles sabem, são pessoas maravilhosas, estudiosas, cuidadosas com os pacientes. Eu sei que a medicina passa por um momento difícil, reconheço que isso está acontecendo. Esses jovens que vão para lá me impressionam. Eles sabem muito, estudam muito, são muito amorosos. Realmente tenho admiração por eles, aprendo muito com eles.
Quando fala em momento difícil, que dificuldades seriam essas?
Acho que essa questão da necessidade de ganhar dinheiro é um aspecto muito importante. Uma necessidade muito artificial. Todos nós precisamos ganhar dinheiro, eu, você. Porém, há um consumismo que atinge não apenas a compra, mas a manutenção de imagens.
Já fui criticado por uma pessoa que foi me visitar porque eu não tinha televisão no meu quarto. Para que eu quero uma televisão no quarto? Quando eu vier dormir, eu vou dormir. Ele achou estranho eu só ter uma televisão na sala.
Outra pessoa já achou estranho meu carro, que é um carro popular. Achou que eu deveria ter outro carro, porque eu sou médico, relativamente conhecido. Existe uma necessidade de manter uma imagem que é maior que a manutenção do bem-estar ou da realização pessoal da criação de ações que levem ao bem-estar próprio e geral. É mais importante você aparentar do que ser. Isso é uma coisa que acaba influenciando todas as profissões.
E essa mudança na concepção começaria quando?
Começa na universidade. Tem alguns estudantes que já manifestam uma postura elitista. Eu entendo que aqueles que frequentam a universidade, seja qual for, tem um certo diferencial em relação a população geral que não teve essa oportunidade. Não que sejam superiores, mas que têm mais vantagens em termo de arranjar emprego, coisas do tipo.
Sei que tem universidades que não oferecem condições de laboratório, um material adequado. Como estudar anatomia sem acesso ao cadáver? Como treinar cirurgia sem acesso a um hospital de forma mais ampla? Tem uma série de universidades que não oferecem isso de forma adequada.
Eu estudei na Federal, em que pesem as dificuldades que não são de hoje, tive acesso a uma série de condições. Não sei o que ocorrerá com os cortes de agora. Fiquei muito triste. Porque já estava ruim. Como ficará agora? Lá no Capão chega principalmente [estudantes] da Ufba, mas chegam de outras universidades também. Bom, eles já sabem como é o Capão. Eles me dizem que é um estágio muito leve em Salvador, porque as unidades não funcionam como deveriam. É o que eles dizem. Mas lá, não; é punk.
Eles têm que fazer tudo que o posto faz. Tem que fazer visita, tem que fazer a parte de burocracia, atendimento ambulatorial. É duro. Eu vejo que eles adoram, tanto o pessoal da universidade privada quanto pública. Mas não sei se porque quem vai já tem certa noção.
Quando você fala em cortes, acredita que isso vai impactar o posto do Capão e o acesso à saúde gratuita no interior de maneira geral? Há anos, você é conhecido como um defensor da saúde pública, do SUS…
Temos a vantagem de que no Capão temos uma equipe de dez, onze pessoas. A questão é assim, repare, o posto de saúde do Capão, como em Palmeiras, a saúde é sofrida por questões como inoperância, ignorância, por muitos motivos. A realidade é que os prefeitos de Palmeiras não têm se revelado pessoas que entendem a realidade da população. Os próprios secretários de saúde têm isso. Não são tão bons quanto esperado. Existem secretários que são bons, como na gestão anterior. O secretário de saúde atual também me parece muito proativo, ele entrou recentemente, estou satisfeito.
O fato é que é um sofrimento. Vou contar um fato: fui chamado, num domingo de tarde, para atender uma mulher que tomou uma machadada na cabeça. Ela estava rachando lenha, o machado pegou num galho, girou no ar e caiu em cima da cabeça e cortou. Felizmente, não rachou a cabeça, os ossos, mas foi um corte que merecia cuidados. Eu fui lá correndo, eu não recebo para trabalhar domingo. Quando cheguei no posto, não tinha luva esterilizada, o que é um problema. Como vou fazer uma sutura sem luva esterilizada? Por sorte, a técnica administrativa viu o posto aberto e perguntou o que passava. Eu respondi, e ela disse que uma enfermeira teria a luva. O marido levou ela de moto e trouxe. Mas também não tinha anestésico. Ela é incrível, extraordinária, sabe tudo, não entendo como uma pessoa sabe tanta coisa. Ela lembrou de uma anestesia que o dentista recebeu. A anestesia para fazer sutura e sem vaso constritor. Só que eu não sei usar essa seringa de dentista. O marido foi buscar o anestesista, que foi, me ensinou a usar. Ele não podia usar porque só tínhamos uma luva. Aí eu fiz anestesia, costurei a mulher, que ficou ali, pacientemente esperando essa brancaleônica situação. E essa é uma coisa que se repete sempre. Compreende?
É muito triste, mas é uma coisa não só do Capão, mas do SUS. Por quê? Existe uma tendência, inclusive vejo isso com frequência, de esculhambar o SUS. O SUS não é ruim. É uma coisa maravilhosa, desgraçadamente é maltratado pelos poderes constituídos. Porque os interesses são outros. É interessante que o SUS acabe, porque o povo, mesmo na miséria, terá que juntar os poucos trocados para pagar pelo atendimento. E já paga, porque nós pagamos impostos, todos nós pagamos pelo SUS. Existe um discurso, que me dá raiva, de que as pessoas não fazem nada. Eu sei essas pessoas que não fazem nada. Eu vivo com elas, eu nasci no Uruguai, eu vivo num lugar que era pobre. Eu trabalhei com comunidades camponesas e sei da luta delas. Para vir um tipo, que tem uma grana da desgrama, que não vê que o governo perdoa dívidas dos grandes, e se queixa daquela pessoa que faz uso do SUS. Eu tenho a sorte de estar numa equipe que dá nó em pingo d’água para poder fazer as coisas.
Quando você diz isso, acredita que caminhamos para o fim do SUS?
Olhe, eu acho muito difícil que o SUS acabe. Porque existe uma resistência, compreende? O que se vai fazer, cada vez mais, é tentar retirar recursos. Mas acabar, acabar, acho difícil, pois já é uma coisa de domínio público, que é o mínimo que um governo que rouba tanto de nós faça. E que fique claro que eu não tenho partido. A corrupção do Brasil já acontece há muito tempo e é democrática, todos os partidos entram, eu acho.
E como resistir?
A Chapada tem o segundo pior IDH da Bahia. Como resistir a isso? Primeiro, falar, escrever, divulgar, discutir, chamar a população. Cada paciente que atendemos explicamos. A maioria a gente comenta como são as coisas. Na gestão anterior, aconteceu de a Associação de Guias do Vale nos dar luvas esterilizadas. Cada vez que eu usava a luva, eu dizia para a pessoa que a luva não foi recebida da prefeitura, mas da associação de guias. Precisamos, a cada momento, alertar a população. Quando alguém chega se queixando que foi maltratado em relação à saúde, eu explico que sou o funcionário dela, daquela pessoa, e quem maltratou não tem o direito e pode denunciar.
Quando o governo não cumpre seus deveres, é necessário que a gente grite, fale. Até no Capão rola passeata (risos). Mas sou visceralmente contra passeatas que quebram coisa. Aí está a merda mais absoluta. Se alguém chega e quebra meu carro por erros de outros, realmente vou ficar muito aborrecido. Os palavrões seriam melhores para dizer o que isso significa.
Nos últimos tempos, você se transformou numa espécie de “médico pop”. Segue, no entanto, defendendo bandeiras como a humildade, o autoconhecimento. No ano retrasado, foi considerado um dos maiores médicos do país. Isso não o desvia? Como manter as diretrizes?
Eu moro no Capão e o povo do Capão me trata como um deles (risos). Eu tenho uma sorte de conhecer jovens que esculhambam, brincam comigo, gozam da minha cara o tempo inteiro. Eu ganhei uma medalha do Mérito, que é a maior comenda do Ministério dada a um médico. Foi uma coisa muito forte, eu fiquei chocado de ser convidado de ir para a Brasília. Meu Deus, o que eu fiz? Fiquei muito impressionado.
Então, eu cheguei no Capão e todo mundo estava um alvoroço. Mas eles tomam cuidado de me mostrar que sou gente como eles. Em determinado momento, estava conversando e um cachorro, de repente, mijou na minha perna. Eu estava conversando com um nativo e falei: “Ei, rapaz, sai para lá”. Aí ele olhou para mim: “Doutor Áureo, não se deixe levar pelo orgulho, e não se esqueça, o cachorro mija para mostrar o que pertence a ele. Não se esqueça que você pertence a isso aqui”. Olha só, velho.
É essa a medicina do cotidiano que o senhor tanto fala, a cura nas pequenas ações?
Tá vendo? Eu tenho uma coisa legal, eu tive oportunidade de conviver com mulheres extraordinárias. Me casei com três mulheres incríveis. Essas mulheres me ensinaram e mostraram com claridade meus defeitos e minhas qualidades. Então, eu aprendi com elas e outras mulheres terapeutas, a ver meus defeitos. É um pouco difícil para mim me deixar levar por isso. É muito legal ter um monte de gente que te conhece, é maravilhoso. Mas não me sinto mais do que você, do que a pessoa que trabalha na roça, eu pergunto para aprender tudo.
E como podemos, nós mesmos, fazer medicina?
Um aspecto tremendamente importante é a gente se dar conta da alimentação. A gente nem sempre comeu bem no passado, até por pobreza. Mas hoje a situação tá pegando. Existem os superprocessados que, rapaz, isso vai ser uma ‘desgraceira no caminho da feira’ no futuro. Pode botar assim mesmo [risos]. Daqui a 10 anos, eu acredito, teremos uma epidemia de hipertensão e diabetes que o governo não vai ter como segurar a onda.
O governo oferece gratuitamente medicamentos, o governo não vai segurar essa onda. E existem cada vez mais ideias interessantes para curar, como pregar adesivos de insulina. Mas sem educação alimentar não vai rolar. Eu já vi livros didáticos da escola pública dizendo para comermos arroz integral. Achei isso muito legal.
Como romper essa cadeia?
Ah, eu acho que deveria haver impostos iguais ao do cigarro e com esse dinheiro fazer campanhas educativas bem feitas. Bem feitas porque tem um monte de coisas bem ridículas. Repare, é muito importante que a propaganda seja positiva. Por exemplo, aquelas fotos de pessoas morrendo não leva a nada, não impede ninguém de fumar. As pessoas vão olhar aquilo, botam no bolso e pronto. Colé, véi? Não cola. O que deve haver é incrementar o positivo. Porque o cigarro é tão interessante? Porque Malboro, o cowboy incrível fumando, ou o cara num superbarco fumando. Você vê na televisão um cara falar para a criança: não coma isso porque tem gosto de brócolis. Entenda, que criança vai querer comer brócolis.
Nesse caminho, qual é o papel do autoconhecimento?
Tudo se torna melhor quando você se conhece. Se autoconhecer é difícil. Quanto mais inteligente, mais a gente se engana. A gente cria mil ondas. O que precisamos é prestar atenção aos percalços. Aos erros. Os erros são a grande coisa. Quando você chegar e disser: “Poxa, tem três meses que eu não erro”. Vai rolar merda, entende? A gente tem que errar todo o tempo, porque é o erro que faz com que depois a gente cresça. Por exemplo, eu, há algum tempo atrás, auscultei uma criança e disse ao estagiário que o bebê precisava de um antibiótico. O estagiário me respondeu: não, o protocolo não é esse, agora é lavagem nasal etc. Ele entendia bastante de pediatria. Então ele me deu uma dica maravilhosa. Eu cometi um erro. Ele pode corrigir meu erro e a partir daí eu não precisei pensar em antibiótico para um paciente que não precisava. Veja que se eu não tivesse errado eu não teria aprendido.
O senhor já escreveu que a medicina está tão arraigada no cotidiano que poderia ser vista até em formas. Por exemplo, formatos de corações poderiam ter poderes curativos…
Eu falei isso? Rapaz, eu sou fera. Tem certeza? [risos] Preciso ler mais o que eu escrevo.
A pintura tem a ver com tudo isso? Quando é que o senhor começa essa aproximação com a arte?
Vixe! Isso é coisa de quando eu era criança. Lembro que bem pequeno ganhei um prêmio por desenho. Escolhi o tema do São João. Aos 11 anos tinha vários cadernos de desenhos sobre mitologia grega. Durante o período em que estudava medicina, a arte me valeu como fonte de renda.Enfim, o desenho e a pintura vêm permeando minha experiência de vida desde bastante jovem.
Por falar dessa tal medicina do cotidiano, e de arte, você costuma utilizar metáforas que parecem ligar maus hábitos a fantasias. Num texto, você chegou a escrever que é tentador negar o que parece fantasia; porém às vezes a verdade se disfarça de fantasia. Então, hoje, qual é a verdade que temos que seguir e a fantasia que precisamos negar?
Pergunte isso a Dalai Lama, a Monja Cohen (risos)… A fantasia da superatividade, a fantasia que somos independentes de tudo. Essa é a maior fantasia, sabe por quê? Isso não é invenção minha, isso desde de Nagarjuna, século IV depois de Cristo, filósofo hindu: “Não existe essência”. Eu não sou essencialmente nada, eu sou só relações. Todos somos relações. A maior fantasia é a que somos inteiros. Eu sou eu porque não sou você. Eu sou eu porque eu me relaciono com a comida, com a luz, com você, sem relação não há existência. Porque eu posso me sentir o médico, o porreta, o que sabe tudo e por aí vai.
Fonte: www.correio24horas.com.br