Porta de entrada para benefícios sociais como o Auxílio Brasil, a rede de atendimento à população vulnerável nos municípios pode sofrer um apagão em 2023 diante de um corte de 95% das verbas de manutenção proposto pelo governo Jair Bolsonaro (PL) no projeto de Orçamento para 2023.
O Sistema Único de Assistência Social (Suas), que inclui os centros de atendimento que fazem a gestão do Cadastro Único, deve receber uma verba de R$ 48,3 milhões em 2023.
O valor é menor que os R$ 967,3 milhões indicados na proposta inicial para 2022, que foram aumentados depois pelo Congresso Nacional e pelo próprio governo durante a execução do Orçamento. Mesmo com as modificações, os valores têm se mostrado insuficientes para o funcionamento pleno dos centros de assistência.
Procurado desde quinta-feira (1º), o Ministério da Cidadania não informou como pretende conseguir elevar a verba para o Suas. A pasta tampouco respondeu aos questionamentos da Folha sobre os cortes, que foram abrangentes e afetaram também outros programas sociais e esportivos, e nem sobre o impacto no Auxílio Brasil.
Ao longo do ano de 2022, a demora para conseguir atendimento nas unidades do Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) —que integram o Suas— gerou um represamento nos pedidos do Auxílio Brasil.
A chamada “fila da fila” é formada por brasileiros que preenchem os critérios para receber o benefício, mas não conseguem se registrar ou mesmo atualizar o cadastro no CadÚnico.
O cidadão pode fazer uma pré-inscrição pelo site ou aplicativo, mas precisa confirmar os dados presencialmente em um dos centros. Só depois dessa etapa é que eles entram formalmente na fila para receber a ajuda do governo.
Em diversas cidades do país, imagens de cidadãos dormindo em frente às unidades do Cras para conseguir atendimento ficaram mais comuns. Em uma madrugada de agosto, uma mulher de 44 anos faleceu enquanto aguardava atendimento no Distrito Federal.
Especialistas em políticas públicas de combate à pobreza dizem que, com o Orçamento proposto por Bolsonaro, esses centros de atendimento correm risco de serem fechados em 2023.
Esses centros são como um braço do Ministério da Cidadania, pois operam o Auxílio Brasil, nos municípios. O custo de funcionamento deles é compartilhado entre o governo federal e as prefeituras.
Parte dos recursos do sistema de assistência social também pode ser usado para bancar salários de servidores públicos que trabalham no atendimento da população de baixa renda.
Na ação de Proteção Social Básica, que abastece os Cras, há na proposta de Orçamento de 2023 uma previsão de R$ 31,9 milhões para atender a 5.530 unidades —uma média de R$ 5,8 mil para cada centro usar no ano inteiro.
Já na ação de Proteção Social Especial, que financia os Creas, foram reservados R$ 16,4 milhões, ou R$ 5,8 mil médios para as 2.824 unidades com esse tipo de atendimento.
Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e principal referência do PT na área social, afirma que a verba reservada no Orçamento enviado por Bolsonaro declara o fim do sistema de assistência social.
“O orçamento previsto é a extinção do Suas, uma lápide em que vai estar escrito: ‘Aqui jaz o sistema único de assistência social”, disse a ex-ministra.
O CadÚnico não serve apenas para mapear quem necessita do Auxílio Brasil. O cadastro é usado como porta de acesso a outros programas sociais, como a tarifa social da conta de luz. Hoje, há 35 milhões de famílias de baixa renda no Brasil. No início do mandato de Bolsonaro, eram 27,3 milhões.
Além de deixar a rede de assistência sem recursos para prestar atendimento, o governo também encaminhou a proposta de Orçamento com uma verba insuficiente para manter o benefício mínimo de R$ 600 do Auxílio Brasil —apesar de essa ser uma promessa eleitoral de Bolsonaro.
Foram reservados R$ 105,7 bilhões para o programa de transferência de renda, o suficiente apenas para bancar um benefício médio de R$ 405,21 a 21,6 milhões de famílias, segundo o Ministério da Economia.
O projeto de Orçamento de 2023 foi apresentado no dia 31 de agosto e ainda será debatido pelo Congresso, que pode alterar a proposta.
Outras ações e projetos do Ministério da Cidadania sofreram cortes na previsão de Orçamento de 2023.
A pasta recebeu para 2023 uma previsão de R$ 4,8 bilhões em gastos discricionários, que bancam despesas de manutenção, compra de materiais e investimentos. No entanto, R$ 1,38 bilhão são emendas de relator (usadas como moeda de troca em negociações com o Congresso e que podem ter a destinação modificada pelos parlamentares), e outros R$ 2,2 bilhões vão financiar o programa Auxílio Gás.
Descontando esses valores, a Cidadania vai efetivamente controlar R$ 1,1 bilhão —uma queda de 55,6% em relação à proposta inicial para 2022.
Ações sociais lançadas ou reformuladas sob a gestão Bolsonaro, como o programa de aquisição de alimentos e o chamado Inclusão Produtiva Rural, também ficaram com verbas quase zeradas.
Na ação voltada à aquisição e distribuição de alimentos da agricultura familiar, a reserva inicial de recursos caiu de R$ 101,7 milhões na proposta de 2022 para R$ 2,7 milhões (queda de 97,4%) no projeto de 2023.
O programa também usa a rede dos Cras para selecionar os beneficiários. A distribuição gratuita dos alimentos é voltada às pessoas que não têm acesso a comida adequada e saudável e àquelas atendidas pela rede de assistência social.
Já o Inclusão Produtiva Rural recebeu uma previsão de R$ 1,3 milhão, o suficiente para atender a 527 famílias. A iniciativa paga um auxílio de R$ 200 mensais a beneficiários do Auxílio Brasil que vivem em zona rural, com o objetivo de incentivá-los a “investir em produção rural própria”.
O valor, porém, é insuficiente para atender ao público-alvo do programa —660 mil famílias de agricultores que recebem o Auxílio Brasil, segundo o próprio Ministério da Cidadania. A cifra também é menor que os R$ 25,3 milhões reservados inicialmente em 2022.
O programa Criança Feliz, bandeira da ex-primeira dama Marcela Temer e que chegou a ser abraçado pela atual primeira-dama, Michelle Bolsonaro, também sofreu um corte significativo, de 50%. Os recursos caíram de R$ 451 milhões na proposta de Orçamento de 2022 para R$ 225,5 milhões na programação para o próximo ano.
O Criança Feliz é voltado a famílias com crianças de até três anos beneficiárias do Auxílio Brasil (sucessor do Bolsa Família) ou de até seis anos beneficiárias do BPC (Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda, ou que se enquadrem em outras situações de amparo social). As famílias recebem visitas técnicas para acompanhamento médico, pedagógico e psicológico.
No primeiro ano de governo Bolsonaro, Michelle foi a alguns eventos do programa com o então ministro da Cidadania Osmar Terra, mas desde então a pasta tem dado menos enfoque às ações do Criança Feliz.
Fontes: Thiago Resende e Idiana Tomazelli/Folhapress// Politica Livre