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Responsável por alimentar as principais bacias do estado, Rio Utinga sofre com exploração motivada pelo agronegócio

Um dos principais rios da Chapada Diamantina e responsável por alimentar as principais bacias do estado, o Rio Utinga vem sofrendo com a redução de sua riqueza hídrica devido à retirada de água para atender às demandas da agricultura irrigada. Os quilombolas e indígenas que vivem nas proximidades do rio manifestam preocupações acerca da redução da autonomia de suas comunidades em relação ao curso d’água.

As límpidas águas do Rio Utinga fluem de uma extensa fonte subterrânea, jorrando a impressionante marca de 630 litros por segundo. Ao percorrer seu caminho desde a nascente até se encontrar com o Marimbus, o rio Utinga abrange uma vasta área de 2.906 km², configurando-se como um subsistema hidrográfico integrante da ampla bacia do rio Paraguaçu.

Os municípios diretamente afetados pela sub-bacia do rio Utinga, seja de forma total ou parcial, incluem Utinga, Wagner, Bonito, Morro do Chapéu, Lajedinho, Ruy Barbosa, Iraquara, Lençóis, Mulungu do Morro e Andaraí. No entanto, é relevante ressaltar que apenas Utinga, Wagner e Bonito possuem suas sedes e a maior parte de seus territórios situados dentro dos limites dessa bacia hidrográfica.

Em 1993, o Plano Diretor de Recursos Hídricos foi concebido com o propósito de regular as outorgas para o uso da água. A partir desse marco, observou-se uma transição nos métodos de irrigação, com canais de regos e barramentos sendo substituídos por bombas e mangueiras. Sob o pretexto da eficiência, o Estado assumiu o controle das águas, resultando na desmantelação das tecnologias sociais de irrigação da comunidade e na perda da autonomia hídrica das populações locais.

Atualmente, ao longo do curso do rio Utinga, estendem-se 3.500 hectares de áreas irrigadas, onde prosperam 2,4 milhões de pés de banana. Contudo, a produção agrícola decresce a cada ano, levando alguns municípios a dependerem de carros-pipa para abastecimento, devido à falta de critérios na gestão do volume de uso, na diversidade das culturas e na adequação das práticas tecnológicas ao longo das estações do ano.

Os meses de setembro e outubro representam um período de alta demanda hídrica para as culturas regionais, enquanto historicamente apresentam as vazões mais baixas nos cursos d’água. Esta discrepância se reflete na escolha de cultivar espécies perenes, como a banana, que exigem irrigação constante, tornando-as menos indicadas nesse contexto.

Analisando os dados, notamos que dez produtores outorgados detêm o controle de 10.898,49 m³ de água superficial diariamente para irrigar 233,35 hectares, resultando em uma média de 46.704 litros por hectare/dia. Além disso, entre 2013 e 2017, há uma tendência de outorgas para volumes expressivos.

A partir de 2017 até 2023, esses mesmos produtores substituíram as outorgas superficiais por subterrâneas, associadas à supressão de vegetação. Essa mudança reflete na expansão das áreas controladas por esses produtores e no aumento dos passivos ambientais, enquanto as comunidades rurais, assentamentos e quilombolas veem declinar a diversidade produtiva e as extensões de áreas cultivadas.

Concomitantemente, estudos da Secretaria de Infraestrutura e Recursos Hídricos indicam uma redução significativa nas vazões no período mais recente (de 2001 a 2018), caindo de 3,412 m³/s para 1.414 m³/s, resultando em menos da metade do volume original. Essa redução é atribuída tanto ao período de estiagem severa na região quanto à retirada excessiva de água para atender às demandas da agricultura irrigada.

Portal SEIA http://sistema.seia.ba.gov.br

Análises do Comitê de Bacias do rio Paraguaçu, desde os anos 50, mostram uma diminuição na vazão média do rio, de 3.149 m³/s em 1958 para 0,531 m³/s em 2018. Esse declínio no volume médio e a maior variação entre os períodos de enchente e estiagem reforçam a preocupante realidade da oferta hídrica na sub-bacia do rio Utinga.

Moradores locais corroboram esses dados, recordando que até o início dos anos 1990, o rio Utinga fluía constantemente sob a ponte da BR 242, proporcionando um cenário propício para atividades como banhos, pesca e observação de cágados d’água. Assim, além das evidências oficiais, testemunhos reforçam a percepção de uma crise hídrica progressiva nos últimos 30 anos, coincidindo com a ascensão da gestão pública dos recursos hídricos e a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos (CBHP, Balanço hídrico superficial preliminar da Bacia do rio Utinga, 2021).

Com a seca em vários trechos, a disputa por água entre pequenos e grandes agricultores se tornou acirrada | FOTO: Divulgação |

O rio insiste em sobreviver
O rio traz consigo uma rica história de resistência e luta que remonta ao século XIX. Por volta de 1846, a região era habitada por diversos quilombos resilientes, que ocupavam e cultivavam as terras ao redor do vale do rio Mocambo. Conforme relatado por Senna (2005), com a descoberta das minas de diamantes em Lençóis e Estiva, surgiu às margens desse rio um arraial composto por humildes casinhas de palha, servindo como ponto de parada para viajantes que conectavam Jacobina, Morro do Chapéu e Orobó. Desde então, há registros de sistemas de barramentos e canais de irrigação nas vazantes do rio Utinga.

Por volta de 1917, a região abrigava mais de uma centena de engenhos de cana, responsáveis pela produção de açúcar, rapadura e cachaça, além de uma abundante colheita de feijão, milho, arroz, mandioca, fumo, batata e outros. Conforme apontado no boletim da Prefeitura Municipal de Utinga – PMU, às margens do rio Utinga floresceram projetos agrícolas com notável produção de hortaliças e frutas, sem desconsiderar as práticas tradicionais da atividade agropecuária, que incluíam a criação bovina e o cultivo de milho, feijão e café (SENNA, 2005, p. 58).

Contudo, essa realidade começou a ser transformada com a chegada do Instituto de Álcool e Açúcar, criado em 1933 pelo governo de Getúlio Vargas. Conforme destacado por Ronaldo Senna em sua obra sobre o vale do rio Utinga (2005), o Instituto exerceu uma influência marcante na economia local, silenciando os engenhos e precipitando um significativo êxodo populacional.

O rio nasce na comunidade de Cabeceira do Rio, na cidade de Utinga, e corta os municípios de Wagner, Lajedinho, Lençóis e Andaraí, e deságua no Rio Santo Antônio, no Pantanal Marimbus | FOTO: Divulgação |

Ações do estado em meio aos conflitos
No período entre 1999 e 2000, a Companhia de Engenharia Hídrica e Saneamento da Bahia (CERB), por meio do Contrato Nº 015/99 com a GEOEXPERTS, conduziu Estudos de Viabilidade de Barragens em uma área da Bacia do rio Utinga. Esses estudos recomendaram a identificação de seis locais para barramentos, incluindo a Barragem Riacho Cachoeirinha, com base em análises hidrológicas realizadas em maio de 1996, solicitadas pela Sete Ferros Agroindustrial Ltda.

O projeto conclusivo propôs uma barragem com capacidade para 4,12 Hm³ (4.120.000 m³), visando regularizar uma vazão de 0,197 m³/s com 100% de garantia. Essa vazão seria suficiente para irrigar aproximadamente 400 hectares. As estruturas de extravasamento da barragem foram dimensionadas para suportar uma cheia de projeto de 346,2 m³/s, equivalente a um Tempo de Recorrência (TR) de 500 anos.

O Projeto Executivo da Barragem no rio Cachoeirinha, no município de Wagner/BA, foi concluído em fevereiro de 2014, pela ENVGEO Engenharia, para a CERB. Em uma avaliação recente, constatou-se a viabilidade topográfica de elevar a cota do Nível d’Água máximo normal em 2,00 m, resultando em uma acumulação de 4,379547 Hm³, um aumento de aproximadamente 44% no volume retido pela barragem.

No entanto, a população tem levantado questionamentos sobre a eficácia dessas barragens, citando o exemplo da comunidade de Cachoeirinha, cuja situação hídrica piorou após a construção clandestina de barragens na fazenda SARPA. Essas ações levaram à seca do rio, conhecido também como rio das Lajes.

As dúvidas e preocupações das comunidades baseiam-se nesse exemplo, evidenciando a percepção de que as barragens na Fazenda SARPA estão prejudicando o rio e deixando diversas comunidades, incluindo Cachoeirinha, sem água. Diante desse cenário, a proposta de construir mais uma barragem no mesmo rio, dentro de uma fazenda, destaca a aparente incapacidade do Estado em conduzir uma gestão democrática das águas.

Atualmente, o rio Utinga destaca-se devido à expansão da agricultura, incluindo a irrigação em suas margens, resultando em conflitos devido à menor disponibilidade de água, agravada pelas variações na pluviosidade. Na parte baixa do rio, ocorrem conflitos sistemáticos ou sazonais relacionados ao uso da água, envolvendo as necessidades de irrigação e o uso prioritário para o abastecimento humano.

O Estado reconhece que esses conflitos são majoritariamente gerados pelos usuários de água para irrigação e outros fins, sugerindo a redistribuição mais eficiente das disponibilidades de água na bacia. Além disso, propõe a ampliação da infraestrutura hídrica, incluindo barragens, poços, canais e adutoras. Entre as sugestões, estão estratégias como armazenar água do período chuvoso para o período seco, utilizar o manancial subterrâneo e adotar práticas que reduzam o consumo de água.

O Estado, no entanto, reconhece suas limitações, especialmente na utilização descontrolada da água subterrânea, com desconhecimento significativo sobre a localização dos poços profundos atualmente explorados. Destaca-se a necessidade de uma gestão mais disciplinada dos recursos hídricos, utilizando instrumentos existentes, como o controle das demandas dos usuários e medidores de vazão, bem como a alocação periódica da água para usuários de irrigação e outros fins.

Nesse contexto, está prevista a construção de três grandes barragens para regularização interanual, quatro barragens sazonais de menor porte no médio Utinga e duas barragens sazonais no baixo Utinga. Duas barragens inicialmente identificadas foram descartadas. Uma delas, a barragem no rio Bonito, está em processo de licitação. A construção desta barragem visa atender à cidade de Wagner, reativar o ramal de captação da Embasa no rio Bonito para o Sistema de Abastecimento de Água (SAA) de Lajedinho e abastecer nove pequenas localidades.

A barragem proposta afeta uma área rural significativa, com mais de 56 construções-sede de propriedades agrícolas, bem cultivadas e com diversas atividades agrícolas. Além disso, uma estrada vicinal percorre todo o vale, facilitando o acesso às propriedades de ambos os lados do rio e à sede de Wagner, além de fornecer energia elétrica. Contudo, a construção implicará em desapropriações na área de inundação, exigindo a construção de aproximadamente 24 km de estradas em ambos os lados do vale e a realocação da rede de energia, que será redimensionada. Jornal da Chapada com informações do portal Racismo Ambiental.

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