“Eu penso que a obra dele permanece ao longo dos séculos especialmente por propor essa investigação do ser humano, esse olhar para personagens que são gente de carne e osso”. Essa é a forma como a doutoranda em Estudos Literários Miréia Vale expressa a razão para a imortalidade da obra de William Shakespeare (1564- 1616). O dia 23 de abril é aniversário do dramaturgo, ator e poeta inglês que transformou a história do teatro. Curiosamente, Shakespeare faleceu também em um 23 de abril, aos 52 anos.
“Se uma pessoa no século XVI sentia ciúmes e raiva, uma pessoa do século XXI sente ciúmes e raiva também”, exemplifica Vale, lembrando dos 457 anos do nascimento do bardo, como eram chamados os poetas na Europa antiga. “Os temas dos quais ele trata são muito humanos, são questões atemporais e que vão estar presentes em várias sociedades e em vários momentos ao longo da história”, pontua. “E isso faz com que nós consigamos nos identificar com personagens que ele escreveu no século XVI, nós lemos e pensamos: ‘nossa, eu já conheci alguém assim’, ou ‘eu tenho isso às vezes’. Porque é o ser humano ali na sua forma mais pura. Por isso, séculos vão se passando e ele continua vivo e tão único”.
Nascido em Stratford-upon-Avon, na Inglaterra, a “estreia” do dramaturgo não foi nos palcos, mas na escola. “Ele vem de uma criação em que os primeiros anos de aprendizado foram numa escola vinculada à paróquia da cidade. Esse primeiro momento da educação dele vai ser de muita importância para o futuro como escritor”, descreve Vale. “Eles tinham uma prática na qual as crianças tinham uns caderninhos, e parte do processo da educação delas era que escrevessem neles relatos de sentimentos, de coisas que elas vivenciavam, ideias, sonhos”, explica. “E essa imersão pelos sentimentos tendo começado tão cedo, e tendo levado ele a começar a escrever de forma voluntária, vai se refletir depois, na obra”, conta.
“Shakespeare vive num período de transição. A época dele é o Renascimento”, contextualiza a acadêmica sobre um momento em que, na Europa, buscava-se reviver antigas tradições greco-romanas em vários âmbitos da arte e ciências. “Antes dele foi a Idade Média, tempo no qual o teatro era usado como forma de transmitir a mensagem da Igreja, porque não tinham as Bíblias traduzidas, era tudo em latim”, descreve. “Então, o teatro era encenado como se fosse num carro alegórico que ia atravessando toda a cidade mostrando alguma passagem bíblica. E Shakespeare nasce num período em que a Inglaterra passava por muitas mudanças”, ressalta. Além do Renascimento, o país passava por momentos de turbulência na política. “Ele começa a usar o teatro como uma ferramenta de entretenimento mesmo. E, diferente do que muitas pessoas pensam, Shakespeare era um autor completamente popular”, explica Vale.
“O teatro dele era muito experimental. Era considerado bom aquilo que funcionava no palco e que agradava aos espectadores”, salienta a acadêmica. O trabalho passava por uma revisão constante, pois os dramaturgos observavam a recepção do público, e mudavam as coisas que não estivessem “funcionando” nas peças, ou seja, que não causassem uma boa reação da plateia. “Existe hoje essa ideia de que Shakespeare escrevia para um público refinado, que não era qualquer pessoa que tinha acesso, mas, na realidade, era o oposto disso”, desmistifica Vale. “Claro que, por vezes, os nobres e até a realeza se interessavam e iam assistir às peças, mas o público alvo de Shakespeare era a população de um modo geral”, ressalta. O Teatro Globe, em Londres, foi criado por Shakespeare e sua companhia em 1599. “As encenações ali no Globe tinham uma média de duas mil pessoas de público”, destaca.
“As peças eram encenadas diariamente e várias vezes ao dia. O único momento que não tinha encenação de peças era aos domingos, respeitando os serviços religiosos, e no período de quaresma”, afirma a doutoranda. Ela explica que a constante revisão poderia acontecer até mesmo várias vezes em um único dia. “Então, podia acontecer de uma pessoa assistir a mesma peça três vezes e ver três situações diferentes. Porque o que agradava ao público, o que funcionava no palco, era considerado um bom texto”, frisa, ressaltando, portanto, a figura de Shakespeare como um dramaturgo de alcance popular.
Vale acredita que a imagem da escrita de Shakespeare como algo hermético e de difícil acesso pode ter surgido por conta das mudanças na língua inglesa ao longo dos séculos. “É claro que, se formos ler as peças no original, nos deparamos com um inglês arcaico, que atualmente é difícil de entender. Assim como para nós, textos em português de séculos atrás tem uma linguagem muito diferente de como falamos hoje”, aponta. “Mas isso não quer dizer que a escrita de Shakespeare era difícil, tem a ver com o processo de evolução da língua”, esclarece.
A imortalidade de personagens de carne e osso – Na literatura, nem tudo o que é de carne e osso perece. Vale evidenciar como a humanidade palpável na obra de Shakespeare foi se sofisticando. “Além dessa revisão que era feita diariamente, o trabalho dele vai amadurecer muito ao longo do tempo”, informa Vale. “Por exemplo, a primeira peça que ele escreve, Tito Andrônico, expõe a violência de um modo muito grosseiro, muito cru. Já em Otelo, apesar de haver violência física, o fio condutor é a violência psicológica”, conta a acadêmica, explicando que, na tragédia Otelo, o personagem Iago manipula emocionalmente os demais. “Essa obra já é muito mais refinada, tem um aprofundamento da complexidade psicológica dos personagens”, declara.
“Ele reinventou a tragédia, nós chamamos de tragédia Shakespeariana. Elas têm alguns traços da tragédia clássica, como a queda do herói, mas a forma como ele conduz essa queda é muito única, é muito dele”, ressalta a doutoranda. Para além das tragédias, Vale destaca a graça imortal também das comédias e de outros gêneros literários pelos quais o dramaturgo transitou. “Nós podemos pensar o Shakespeare enquanto um escritor universal, porque ele conseguiu representar o ser humano, e se apropriar de temas muito importantes, independentemente do gênero de escrita”.
“Existem comédias dele que são incríveis, que tratam também de questões muito importantes, que fazem apontamentos para se refletir, são textos que nos possibilitam investigar vários temas, mas com toda aquela leveza da comédia, com aquela coisa de causar riso e divertimento no espectador ou no leitor”, realça. “Então, quem tiver a oportunidade, leia e conheça um pouco da obra de Shakespeare”, conclui Vale, ressaltando o quanto as características mais intrínsecas da mente se conservam e estão vivas nos personagens tão inerentemente humanos.
Arte nas pandemias: refúgio para as angústias do isolamento – A epidemia de peste bubônica, que chegou à Europa no século XIV, foi responsável pela morte de cerca de um terço da população europeia à época. Houveram, porém, novos surtos da doença em diferentes momentos e, na Inglaterra elisabetana (reinado da Rainha Elizabeth I, 1558-1603), ao longo de toda a vida de Shakespeare houveram diferentes surtos da doença. Existe até mesmo a especulação de que o dramaturgo tenha escrito algumas de suas peças em períodos de quarentena, em que os teatros precisavam ser fechados para conter o avanço da peste. “Confesso que, em todos esses anos que estudo Shakespeare, nunca li nada sobre ele ter escrito alguma das peças especificamente em um período de quarentena”, conta Vale. “Acredito que isso seja sim, possível, mas sempre havia o intuito de que, num momento oportuno, a peça pudesse ser encenada, para permitir todo aquele processo de reescrita baseado na recepção do público”.
E Shakespeare não é o único que pode ter usado o isolamento social para se dedicar à escrita. A estudante de Jornalismo Cristye Vilas Boas tem postado diariamente textos, pensamentos, crônicas, dentre outras produções literárias, em sua página no Instagram @veiasdesol. “No início da pandemia (de Covid 19), teve um ‘boom’ de pessoas criando conteúdo nas redes sociais. Até me perguntaram se era por isso que eu tinha feito o Instagram”, lembra a estudante. “Na verdade, não foi por isso, eu já planejava fazer há algum tempo, mas acabou que as coisas culminaram de acontecer ao mesmo tempo”, explica.
“A escrita sempre foi muito importante na minha vida, uma parte de quem eu sou. Quando eu era pequenininha, lembro que as primeiras coisas que eu escrevi foram peças de teatro que eu apresentava para os meus pais. Desde bem novinha os meus pais leem para mim, me incentivam muito”, conta Vilas Boas. E as peças de teatro não são as únicas semelhanças da estudante com o bardo. Ela também, assim como Shakespeare, cultiva o hábito de registrar seus sentimentos, pensamentos e experiências desde criança, quando usava caderninhos para isso. “De certa forma, o Instagram virou isso para mim também. Porque eu sentia que os meus textos não viviam. Parecia que, quando eu os escrevia, eles estavam nascendo, mas morriam e ficavam esquecidos. Com o Instagram, pude sentir os meus textos ganhando vida”, relata.
“Eu acho que a pandemia e o isolamento social com certeza influenciaram minha escrita. Acho que isso de passar mais tempo consigo mesmo, nos faz olhar mais para dentro e, na minha escrita, isso está ainda mais presente”, reflete. “Eu sempre fui de escrever muito sobre o que eu sinto, sobre o que eu vivo, mas agora, com a pandemia, eu sinto que o tempo todo estou elaborando as coisas que passam pela minha cabeça, as coisas que estão dentro de mim, porque estamos tendo que passar muito tempo com nós mesmos”, comenta. “E a escrita acaba sendo um jeito de me ajudar a manejar isso, de eu conseguir me entender também, fazer uma ‘manutenção emocional’”.
O estudante de Economia Pedro Souza Silva, entretanto, que também escreve poemas e textos literários, tem tido dificuldades para se dedicar à escrita. “Eu trabalho, estudo e pratico minhas atividades extras no mesmo lugar. Tem sido difícil também pois, nesse momento, não tenho muitas coisas felizes para escrever”, relata. Ele confirma, porém, que a escrita tem papel terapêutico em sua relação com o mundo. “Geralmente é como eu dou sentido para as coisas. A maneira como eu escrevo algo é como eu o entendo. A escrita me dá a possibilidade de traduzir minhas emoções no papel, tornando-as mais fáceis de serem compreendidas”, salienta.
“A escrita também me permite elevar as coisas simples à minha volta a outro patamar de importância. Os sons, as cores e as texturas das coisas ao meu redor nessa espécie de auto confinamento servem como inspiração na hora de escrever, por falta de opção, muitas vezes. E, dessa forma, me faz dar mais valor às coisas simples da vida”, destaca o estudante. “Eu acredito que, na pandemia, as pessoas têm sim prestado mais atenção a produções que mexem com as emoções, especialmente quando as distraem da realidade triste do momento que estamos vivendo, como uma forma de escape”, revela.
Ambos os estudantes avaliam que, muitas pessoas que conhecem, passaram a ler mais desde o início da pandemia. “Minha hipótese é de que, quem já utilizava a literatura como forma de buscar um conforto, o faz com mais frequência hoje”, conjectura Silva. Vilas Boas confirma, e conta que ela mesma voltou a ler com mais frequência. “Antes, eu passei por um período em que perdi aquele hábito de leitura, só lia quando dava. Mas desde o começo da pandemia, estou sempre lendo alguma coisa”. A estudante de Jornalismo reitera o papel da arte como refúgio. “Eu acho que, quando tudo começou a ficar sombrio, foi para a arte que as pessoas se voltaram, e acho que sempre é assim, e tem de ser assim mesmo”, reconhece. “A arte é um mecanismo de luta também, de crítica. Mas ela é, além disso, uma ferramenta de acolhimento e de amparo”.
Fernanda Circhia