Surtos psicóticos estão entre os efeitos adversos relatados por pessoas que fizeram o uso do psicodélico em sessões do Instituto Xamanismo Sete Raios. Elas dizem que não foram informadas da ilegalidade da substância. Instituto diz ser alvo de perseguição religiosa.
Crises de pânico e de ansiedade, surtos psicóticos, problemas respiratórios e pensamentos suicidas são alguns dos problemas relatados pela advogada Gabriela Augusta Silva, de Goiás, depois de participar de um ritual realizado por um grupo que se define como xamânico – com uma substância psicodélica proibida no Brasil.
Gabriela foi submetida a uma sessão com o veneno de um sapo conhecido como Bufo alvarius para, segundo ela, aprofundar sua jornada espiritual.
No dia 21 de outubro de 2021, a advogada, que vive em Goiânia, foi até São Paulo para o ritual. Inalada a substância, disse ter perdido a consciência. Quando acordou, cerca de 30 minutos depois, nunca mais foi a mesma, afirmou.
Enfrentando o luto pela perda do irmão – que morreu em 2017, em um acidente de carro –, Gabriela buscava maior conexão com Deus e fora incentivada por um dos integrantes do grupo a experimentar o veneno com propriedades psicodélicas. Ela não foi a única (saiba de mais casos abaixo).
Gabriela, que afirma jamais ter tido questões de saúde mental, chegou a ser internada em um hospital neurológico, passou a frequentar o psiquiatra e a tomar remédios controlados. Só quando procurou um médico soube que a substância inalada é proibida no Brasil.
Trata-se da 5-MeO-DMT, um psicodélico que está na lista de substâncias proibidas pela Anvisa e compõe o veneno do sapo Bufo alvarius (renomeado Incilius alvarius), encontrado no México e nos Estados Unidos.
O veneno, conhecido popularmente como “bufo”, seca quando extraído e, depois, é fumado em rituais e cerimônias ditas religiosas e espirituais no exterior e no Brasil, liberando o psicodélico 5-MeO-DMT e outras substâncias.
Substância enterrada em quintal de suposto líder espiritual
Segundo a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos, do Ministério da Justiça, “o uso de substâncias alucinógenas como a 5-MeO-DMT, retirada do sapo Bufo alvarius, é crime, uma vez que tal prática é proibida no país”. A fiscalização é atribuição da polícia, afirma a Senad.
No início de abril, a Polícia Civil de Goiás apreendeu a substância pela primeira vez no país – a perícia confirmou se tratar da 5-MeO-DMT. Ela estava enterrada no quintal da casa de um suposto líder espiritual em Pirenópolis.
O g1 ouviu Gabriela e outras pessoas que relataram terem participado de rituais com o suposto uso do veneno promovidos pelo Instituto de Vivências Xamânicas Xamanismo Sete Raios, que possui mais de 200 mil seguidores nas redes sociais e é baseado em São Paulo.
Em todos os relatos, um padrão se repete:
- os participantes não foram informados sobre a ilegalidade da substância;
- não assinaram termos de responsabilidade;
- não foram acompanhados depois das sessões;
- quando questionaram os integrantes do Xamanismo Sete Raios a respeito de efeitos adversos posteriores, ouviram se tratar de algo “normal”.
O grupo Xamanismo Sete Raios é alvo de inquérito da Polícia Civil de São Paulo, que apura possível crime de tráfico de drogas. Segundo a polícia, o Departamento de Investigações sobre Narcóticos segue realizando diligências para o esclarecimento dos fatos.
Um outro inquérito chegou a ser aberto para apurar a prática de curandeirismo, mas foi arquivado por falta de provas.
Gabriela entrou com uma ação de reparação de danos material e moral contra o instituto. Segundo o advogado dela, Auro Jayme, entre os crimes que podem ter sido cometidos estão charlatanismo, “pois eles anunciam cura por um meio secreto e infalível”, e curandeirismo, “pois eles prescrevem, ministram ou aplicam, habilmente a substância”.
“Eles manipulam pessoas, dão um tom de religiosidade nesses rituais e anunciam essas curas, inclusive através dessa substância proibida, que é o bufo”, afirma Jayme.
Além disso, ele diz que é preciso apurar o “caminho da droga” (veja detalhes ao longo da reportagem).
“Ao que tudo indica, essa substância ilícita vem do México. É preciso saber se ela de fato vem desse país, quem traz essa droga e como traz, porque a partir daí pode estar configurado tráfico internacional de drogas.”
Procurado pelo g1, o Instituto Xamanismo Sete Raios afirmou, por meio de suas advogadas, que “jamais teve ou tem como objetivo incentivar ou promover o uso social ou terapêutico de substâncias ou, ainda, a substituição de práticas de saúde, tratando-se exclusividade de abordagem de caráter ritualística e religiosa, com finalidades espirituais”.
O instituto afirma ainda que, no final do ano de 2019, recebeu a visita de um suposto líder espiritual que trouxe do México o 5-MeO-DMT, extraído do sapo Bufo alvarius, e conduziu dois rituais com a substância na presença de integrantes do grupo Xamanismo Sete Raios.
“À época dos eventos, os representantes do Instituto não tinham conhecimento da discussão acerca da legalidade do Bufo alvarius no Brasil”, afirma a nota.
O instituto nega que tenha tido qualquer associação a rituais como esses posteriormente. Os relatos colhidos pela reportagem, no entanto, dão conta de sessões com suposto uso do psicodélico realizadas em 2021.
A nota afirma que “alguns membros do Instituto, de forma independente, deram continuidade aos estudos e rituais individuais com o Bufo alvarius” e que “esses rituais não tinham vinculação com as atividades do Instituto Xamanismo Sete Raios, tampouco com suas práticas religiosas”. (Veja nota completa no final da reportagem).
Efeitos da substância
Quando inalada, a 5-MeO-DMT produz intensas experiências psicodélicas, que podem incluir alucinações. Em estudos observacionais, participantes relataram sentimentos de unidade com os outros e com o ambiente, além de sensações de dissolução de limites e do ego.
Em um desses estudos, voluntários saudáveis que usaram a secreção do Bufo alvarius apontaram melhoras em sintomas de depressão, ansiedade e estresse após uma única inalação.
Entre os efeitos adversos observados estão medo, tristeza, ansiedade, paranoia, além de problemas cardiovasculares e respiratórios.
Mas foram os potenciais benefícios que aumentaram a popularidade do “bufo” em retiros no México – onde é legal – e nos Estados Unidos – onde a substância é proibida, assim como no Brasil.
Ainda precisam ser feitos estudos científicos com maior número de voluntários para melhor compreensão dos benefícios e dos riscos.
“O que a gente já sabe sobre os efeitos da 5-MeO-DMT está muito alinhado com o que sabemos sobre os efeitos de outras substâncias psicodélicas”, afirma Dráulio Araújo, professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e pesquisador dos efeitos da ayahuasca há 20 anos.
O instituto, que é referência em pesquisas com psicodélicos, não trabalha com a 5-MeO-DMT, mas com substâncias similares da classe das triptaminas.
“Do ponto de vista físico, está muito claro que essas substâncias não matam, não causam overdose e não causam tolerância [dependência química], mas claro que há grupos de risco”, diz ele.
“Nada é seguro para todo mundo, nada é para todo mundo.”
Já do ponto de vista psicológico, explica o pesquisador, os usuários podem ter diferentes experiências marcantes e significativas, por isso, preparação anterior e acompanhamento posterior são essenciais.
“Particularmente no 5-MeO-DMT, é comum pessoas relatarem que tiveram a sensação de que morreram. Não é trivial”, diz ele.
Segundo Araújo, uma experiência psicodélica segura precisa garantir:
- a pureza da substância utilizada, seja ela qual for, e a dose adequada;
- indivíduos aptos para o uso – no laboratório do Instituto do Cérebro, pessoas com doenças cardiovasculares, gravidez, depressão, transtorno bipolar e risco de esquizofrenia não entram nos estudos, por exemplo;
- condições adequadas para o uso, que incluem ambiente seguro e acompanhamento prévio e posterior – seja em uma pesquisa científica ou no contexto religioso. Araújo dá o exemplo de igrejas que administram ayahuasca – autorizada no Brasil para uso religioso – de forma responsável, com protocolos específicos.
O bufo no Xamanismo Sete Raios
Captura de tela de foto postada no Instagram de Mauricio Ferro, integrante do Xamanismo Sete Raios. No canto direito, é possível ver Felipe Rocha, fundador do instituto. Até a tarde do dia 14/04, a imagem ainda estava disponível no perfil de Mauricio. — Foto: Reprodução Instagram
Nos casos ouvidos pelo g1, essas condições não foram garantidas aos participantes de rituais com o veneno do Bufo alvarius – com o agravante de que, segundo eles, não foram informados sobre a ilicitude da 5-MeO-DMT no Brasil.
Esses participantes relatam que, em retiros, eventos e na comunicação on-line, integrantes do Xamanismo Sete Raios sempre se referiram ao veneno do sapo com naturalidade como uma “medicina”.
A comissária de bordo Franciele Roggia sofria de depressão e ansiedade e fazia uso de remédios controlados quando procurou o grupo.
“Me mandaram um documento explicando o que era o bufo. Nesse documento, chamam a substância de ‘medicamento’ e dizem que ela cura doenças físicas, mentais e emocionais”, conta ela, que pagou R$ 700 para um ritual em que seria administrada a substância, em abril de 2021.
Por Isabel Seta, g1 — São Paulo