Ainda na infância, Benedita Maria do Nascimento, a caçula entre nove irmãs, aprendeu com o pai a arte de transformar cipó em cestas e balaios no sítio Oiteiros, em São Gonçalo do Amarante, região metropolitana de Natal, no Rio Grande do Norte.
Enquanto tecia as peças artesanais, debaixo de um pé de manga, seu Atanásio Salustino cantava o que aprendeu com os antepassados. Benedita escutava atenta. “Dom Jorge eu ouvi dizer que tu tavas pra casar. É verdade, Juliana, eu vim te desenganar. Esperai, Rei Dom Jorge, que eu vou lá no meu reinado, vou ver um copo de vinho que eu pra ti tenho guardado”.
Benedita não sabia, mas as canções que ouvia de seu pai e guardava na memória eram romances ibéricos, histórias de conquistas que eram contadas e cantadas na era medieval. Herança trazida para o Brasil nas caravelas pelos colonizadores europeus.
“Chegou por livros e chegou na memória”, é o que conta Maria Emília Monteiro Porto, professora de História Moderna e História do Brasil Colonial da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Segundo ela, o povo ibérico tinha um tradição de romances muito específica e particular, em razão da ocupação da região pelos árabes.
“Essa ocupação acontece entre o século 7 e só vai acabar no século 15, em 1453, e isso também provoca toda essa história de luta e heroísmo que vai ser a base desses romances, dessas histórias que são contadas. Inclusive, muitos temas do nosso cancioneiro nordestino vão lidar com essa briga entre mouros e cristãos”.
Mas essa ideia de cantar as aventuras é ainda anterior à Idade Média. Remete ao mundo antigo. “Seja nas histórias de Heródoto, mas sobretudo Homero na Ilíada e na Odisseia. Ele (Homero) é um cantador. Exatamente um modelo do cantador que nós temos hoje, tanto aqui no Nordeste, quanto nos séculos 10, 11, 12, 13, 14, 15 na Europa”, diz Monteiro Porto.
Mantendo o conhecimento vivo
Pelo menos até o século 15 a escrita circulava muito pouco. A ideia de cantar as histórias surgiu exatamente para manter o conhecimento vivo, geração após geração. “Os romances terminam com uma certa combinação pra ajudar o cantador a sempre recordar. A rima ajuda a memorização”, diz a professora.