Um avião da Polícia Federal (PF) decolou de Brasília, na manhã de 22 de agosto, rumo ao Suriname, com caixas que deveriam armazenar 29 araras-azuis-de-lear, mas retornou no dia seguinte com só cinco aves. O paradeiro das araras roubadas de um depósito do governo surinamês ainda é desconhecido. Já a única região do mundo onde essas aves existem livremente é conhecida desde 1978: o Raso da Catarina, na Bahia.
Só neste ano, 32 araras-azuis-de-lear foram encontradas em dois países: Bangladesh, onde as três aves traficadas morreram, em maio, e no Suriname. Qualquer arara roubada dos ninhos desequilibra o ecossistema. Em média, 2,2 mil aves dessa espécie em risco de extinção vivem livres no Norte da Bahia, onde o solo e paredões da Caatinga tingem de laranja a paisagem.
O resgate no Suriname aconteceu às vésperas do início do período reprodutivo das araras, o que pode atrair traficantes de animais. Por isso, a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) cobrou investigações, no fim de agosto, ao Ministério Público Federal sobre o esquema de tráfico de araras no Raso da Catarina.
O procurador responsável pelo caso na Bahia disse que a apuração está em “estágio inicial e que não serão repassadas informações”.
Segundo a Renctas, aquela foi a maior apreensão dessa espécie, que abastece um mercado ilegal milionário. Cada ave é vendida a colecionadores por R$ 200 mil, de acordo com a Renctas. Fora da natureza, elas são criadas como se fossem animais domésticos e dão origem a novas ninhadas.
As autoridades brasileiras foram comunicadas do tráfico das 29 araras no fim de julho. Só um mês depois, no entanto, agentes da PF, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Icmbio) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) viajaram para o Suriname.
As cinco araras resgatadas cumprem quarentena – para evitar, por exemplo, que disseminem eventuais doenças contraídas – na Estação Quarentenária de Cananeia, em São Paulo. “Às vezes, a ave precisa esperar meses para voltar para a natureza”, explica Silvia Neri Godoy, analista ambiental do ICMBio que viajou ao Suriname.
O destino das aves está indefinido e não se sabe se elas saíram de cativeiros ou da natureza – as respostas virão de testes genéticos. No território de onde elas são nativas, a proteção da espécie esbarra em desafios como a dificuldade de fiscalizar a imensidão das áreas de 12 cidades sobrevoadas pelas araras e a ineficiência de órgãos públicos.
Uma das áreas criadas em 2001 para proteger a vegetação e as araras, por exemplo, ficou sem funcionários por oito anos. As apreensões das araras-azuis-de-lear acontecem em um período de repovoamento da espécie.
Desde que foram descobertas, o número de araras livres cresceu 100 vezes. “O sucesso de expansão se dá pelos esforços mútuos. Mas estamos preocupados com o futuro das araras”, diz uma moradora, sem querer ser identificada.
Como funciona a rede de tráfico de araras?
Todos os dias, araras-azuis-de-lear voam entre 60 e 80 quilômetros. Saem de ninhos ao nascer do sol para se alimentar de frutos de palmeiras, como o licuri e mais 30 espécies. Só retornam ao entardecer para um dos sete dormitórios – dois em Canudos, dois em Euclides da Cunha, dois em Jeremoabo e um em Glória.
Na rota dessas aves, estão três unidades de proteção públicas, que abrangem 517 mil hectares (sete vezes o tamanho da área de Salvador, em média), entre sete municípios. Duas delas são de responsabilidade do Icmbio: a Estação Ecológica Raso da Catarina (Esec), criada em 1984, e o Parque Nacional do Boqueirão da Onça, de abril de 2018.
A terceira área de conservação é a Área de Proteção Ambiental de Serra Branca, gerida pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), do Governo da Bahia. Foi essa a unidade que ficou oito anos sem funcionários.
Ao norte da APA, está a Fazenda Barreiras, distrito de Canudos, onde existem dormitórios de araras. Lá, agricultores dialogam para evitar que forasteiros entrem no território, onde já foram identificadas escadas de madeira escavadas nas rochas de arenito, usadas para roubo de papagaios.
por
José Monteiro, um dos produtores.
“Estamos sempre de olho. Criamos abelhas e gado lá. Quem entra aqui e não está fazendo isso, para nós, é suspeito.”
Em 2020, um morador da região que pediu anonimato denunciou ao Inema a suspeita de que um vizinho havia roubado araras do ninho, na APA. A queixa, no entanto, não gerou desdobramentos.
A região onde vivem as araras-azuis-de-lear é marcada pela pobreza econômica dos moradores, o que pode vulnerabilizar as populações ao assédio de criminosos. “O local é esquecido. Mesmo aqueles que dizem que protegem as araras raramente vão ver o que está acontecendo”.
Araras-azuis-de-lear sobrevoam a caatinga. Crédito: Jefferson Bob
Um servidor da Esec Raso da Catarina diz à reportagem, sob a condição de anonimato, não acreditar que as araras são roubadas em idade adulta. A suspeita dele é que os criminosos se abasteçam de ovos de araras em ninhos fora das áreas de proteção.
As araras-azuis-de-lear tem até 75 centímetros e “gritam alto”. Segundo o agente, essas características dificultariam o transporte e a discrição necessária ao crime. O Icmbio, completa ele, recebeu uma denúncia de tráfico de araras em 10 anos. “Talvez estejam saindo de algum aeroporto menor, mas o animal mesmo é difícil de traficar”, afirma.
Há indícios, no entanto, de que as aves encontradas no Suriname vivessem livres, como as habilidades de alimentação típicas da vida na natureza, de acordo o Icmbio.
O relato do funcionário da autarquia federal reforça a suspeita da Renctas de que as araras roubadas deixem o país em jatinhos ou por um trecho de estrada próximo de Canudos.
Para ele, uma das dificuldades de atuação é a falta de fiscalização permanente em “Barreiras e Euclides da Cunha”. Na estação de 104 mil hectares, trabalham 28 funcionários.
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Servidor do Icmbio.
“Muitas araras vivem e se reproduzem fora da área do Icmbio. Os fiscais fazem operações nas Barreiras umas quatro vezes por ano para colaborar com a proteção da área. Mas não é suficiente. E a área não está sob a jurisdição nossa.”
Para alcançar os ninhos de araras, em fendas de paredões de arenito com até 50 metros de altura, só por rapel. Há apenas uma equipe de biólogos autorizada pelo Icmbio para fazer essa atividade na Esec do Raso da Catarina, com objetivo de estudar as aves. Oficialmente, nem o Inema, nem o Icmbio responderam à reportagem.
Araras-azuis-de-lear nos paredões da Caatinga. Crédito: Jefferson Bob
Outra unidade monitorada que abrange dormitórios das araras é a Estação Ecológica de Canudos. A reserva, no entanto, é privada e cobra R$ 200 a visitantes.
por
Paulo Machado, diretor da Fundação Biodiversitas, que administra a Estação.
“Nós não tivemos denúncias de pessoas entrando em nossa área. Mas existem dois pontos: as araras se expandiram. Era um pouco mais fácil [de vigiar]. Outro ponto é que estamos falando de um crime organizado, o tráfico internacional de animais movimenta centena de milhares de dólares.”
O Fundo Mundial para a Natureza calcula os lucros do tráfico de animais em R$ 100 bilhões por ano. Para Machado, formalizar a criação legalizada de animais poderia ajudar a enfraquecer o tráfico. “Tem que ter fiscalização, educação ambiental. Mas ainda existe o tráfico, e um caminho seria criar uma fonte legalizada”.
Desde janeiro, foram resgatadas 2,3 mil aves em estradas baianas, calcula a Polícia Rodoviária Federal – nenhuma delas eram araras-azuis-de-lear.
Araras-azuis-de-lear foram descobertas por alemão
As araras-azuis-de-lear apareceram em ilustrações de europeus, com base em exemplares empalhados, no século 19. Mas a origem delas ficou desconhecida até 1978, quando foram identificadas no Raso da Catarina pelo ornitólogo alemão Helmut Sick. O estrangeiro, que morava no Brasil há 20 anos, catalogou 41 araras-azuis-de-lear naquela fatia da Caatinga.
À época, elas já estavam ameaçadas pelo tráfico e pela degradação de seu habitat. As primeiras três araras-azuis-de-lear traficadas – que se tenha registro – chegaram na Inglaterra nos anos 80, escondidas no tanque de combustível de um carro.
Helmut Sick, alemão que revelou origem das araras-azuis-de-lear ao mundo. Crédito: revista Atualidades Ornitológicas
Desde então, o tráfico abasteceu os criadouros de colecionadores de países como Portugal, Alemanha, Rússia, Ucrânia, Holanda, Bélgica e Luxemburgo, informa uma das agências ambientais da Unesco, a Cites.
As araras-azuis, no Brasil, pertencem a um gênero chamado cientificamente “Anodorhynchus”, que possui duas espécies vivas: a Arara-azul e a Arara-azul-de-lear.
“Havia também a Arara-azul-pequena, que era encontrada no sul do Brasil, mas foi extinta na década de 1960.”
A maioria das araras-azuis-de-lear é monogâmica. A perda de um indivíduo significa o sumiço de um parceiro reprodutor de uma arara, completa Batalha.
O guia Carlos Santos acorda diariamente ao som do canto das araras sobre a casa dele, no distrito de Água Branca, em Canudos. Há 15 anos, ele leva turistas para ver de perto as aves.
por
Carlos.
“As araras são importantes para a natureza e economicamente. Quem não acha é porque não gosta de natureza”
Na juventude, ele lembra que as araras eram tidas como inimigas por agricultores, já que algumas destruíam plantações de milho e feijão pelo caminho. “Foi um trabalho de a gente se reunir, mostrar a importância delas”, lembra. Os encontros surtiram efeito. As populações de araras cresceram, ainda que acossadas pelo tráfico.
Hoje, as discussões locais têm pautado ainda duas questões: a morte de araras eletrocutadas em postes da Neoenergia Coelba e o parque eólico em Canudos.