Pesquisa da Universidade Federal de Goiás aponta para transmissão vertical da doença, antecipando etapas no ciclo de contaminação, que passaria do vetor para os humanos. Especialista avalia vacina como instrumento fundamental para a redução das desigualdades
A especialista em Aedes aegypti Denise Valle conversou com o Correio e falou sobre os impactos da descoberta para a população e para as autoridades de saúde responsáveis pelo controle de endemias. Sobre um aumento de casos, afirmou ser “leviano” associar a descoberta a situações como a enfrentada pelos Brasil, neste verão. “Não temos ideia, de fato, do quanto isso representa no número de casos”.
A bióloga destaca que o mosquito é tratado como inimigo número um quando a pauta é dengue, no entanto, os próprios humanos asseguram as condições necessárias para o seu desenvolvimento. “No discurso, o mosquito é tratado como inimigo número um. Mas, na prática, é como se ele fosse o melhor amigo do homem”, avalia.
Denise Valle é criadora da campanha 10 Minutos contra o Aedes, divulgada pelo Ministério da Saúde, e pesquisadora do Laboratório de Medicina Experimental e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
O que significa essa transmissão vertical?
Algumas vezes você encontra no campo uma larva infectada, um ovo infectado ou um macho infectado. Isso significa que ele foi infectado pela mãe, porque nem o ovo come sangue, nem a larva come sangue, só a fêmea. Já sabemos que isso existe, e tem mais esse estudo comprovando. Só que não podemos, e seria leviano, associar isso a um aumento de casos ou a gravidade dos casos. Não temos ideia, de fato, do quanto isso representa no número de casos.
E no que essa transmissão vertical pode impactar nas epidemias de dengue?
É muito difícil ter como medir. Como isso será medido na natureza? Como você vai medir no campo? Não é possível saber quantos ovos estão ali, quantos mosquitos estão voando, quantas larvas? É impossível. Então, acreditamos que essa transmissão transovariana, que é da mosquita mãe para os ovos, é responsável, no caso de dengue, pelo que chamamos de componente explosivo das epidemias de dengue. Os ovos do Aedes ficam no seco de um verão até o outro. Acredita que quando chegam as chuvas no próximo verão, os ovos vão eclodir e alguns dos mosquitos já vão ser infectados e infectivos. Eles já vão nascer podendo começar a transmissão. E isso vai ser multiplicado de geração em geração do mosquito.
Isso está ocorrendo com mais frequência, atualmente?
A tendência é que vai existir cada vez mais. Primeiro, porque as pessoas estão procurando mais. Segundo porque temos ferramentas que são mais potentes para identificar o vírus no mosquito. Estamos melhorando nossos instrumentos de trabalho.
E quais pesquisas ou iniciativas destacaria no Brasil, atualmente?
O que destaco é um movimento que nem tem a ver com pesquisa, mas com a vigilância. É um movimento do Ministério da Saúde de tentar mudar a concepção da erradicação para a do controle do mosquito. Não falamos de erradicação do mosquito desde 2012. Porém, a prática da vigilância é feita pela perspectiva da erradicação. Os agentes são obrigados a olhar todos os domicílios, fazerem visitas a cada dois meses , independentemente se o domicílio está sendo bem cuidado ou não. É uma prática de varredura. E é um esforço muito grande, pois tem muita gente (trabalhando), mas pouca gente para fazer esse esforço todo. O ministério está trabalhando numa lógica de tentar identificar quais são, numa área, território, município, os lugares que têm mais acúmulo de ovos ou de larva. Vamos dar prioridade para o controle nessas áreas. Com isso, otimizamos recursos.
O Brasil avançou na contenção das epidemias de dengue?
Temos vários métodos para melhorar. Mas são métodos que, no meu entendimento, têm um viés biomédico. São métodos para diminuir a quantidade de mosquito, o foco é o mosquito. Você tem lá os mosquitos transgênicos, os mosquitos histéricos, os infectados com wolbachia, inseticidas…
Na minha concepção, essas são estratégias complementares de controle, e estão baseadas no diagnóstico de que o mosquito é o inimigo. No discurso, o mosquito é tratado como inimigo número um. Mas, na prática, é como se ele fosse o melhor amigo do homem. Nós criamos as condições para ele viver junto com a gente, tanto no âmbito privado, quanto público.
Quais são essas condições?
Não trabalhamos para diminuir as desigualdades, não trabalhamos como deveríamos no saneamento, no abastecimento regular de água, na coleta regular de lixo. E é disso que ele se beneficia. Então, enquanto a gente estiver colocando o foco essencialmente no mosquito, vamos continuar enxugando gelo, criando as condições para ele se proliferar.
O fundamental seria tratar as questões de água e de saneamento…
E de desigualdade. Me revolta muito ver o agente de endemias entrando nas casas das pessoas, com a maior boa vontade, e tentando “ensinar” que é importante manter os seus recipientes de água para consumo próprio fechados. Mas é importante saber por que aquela pessoa está com um recipiente de água dentro de casa. Porque ela não tem abastecimento de água!
É um problema do poder público que afeta muitas áreas?
Sabemos que 75% dos criadouros estão dentro de casa. Mas os criadores mais produtivos estão em terrenos coletivos e eles são da esfera pública. Borracharias, cemitérios, obras abandonadas, imobiliário urbano desassistido… É importante, claro, no âmbito privado, cada um fazer a sua parte, cuidar do seu espaço. Mas é importante exercer o direito de cobrar do poder público as questões estruturais.
É como se estivesse olhando paro o lugar errado?
É isso. Costumo dizer que um bom remédio, precisa de um bom diagnóstico. E aí, o que a gente vê? Chega no verão, vem epidemia e só falamos em dengue. Passa o inverno, ninguém fala em dengue. Mas os ovos estão lá, as desigualdades estão lá, a falta de abastecimento de água está lá.
Há a possibilidade da incidência de dengue ocorrer todas as épocas do ano?
Provavelmente a gente vai ter. O Brasil tem enfrentado a dengue hiperepidêmica. Hiper, não porque é muito, mas porque temos vários sorotipos circulando. E períodos de epidemia. A gente tem tido sempre mais casos de dengue no verão, quando está mais quente e tem mais água pois chove mais. Mas nunca deixaremos de ter dengue.
A pandemia da covid-19 pode ter contribuído para o surto de casos de 2023?
Acho que, em parte, muito do aumento dos casos de dengue, é porque passamos um tempo só olhando para a covid. As pessoas ficaram em casa e não prestavam atenção nos espaços privados. Os agentes públicos também não prestaram atenção, porque estávamos muito focados na covid. Então, teve um espaço para essas doenças crescerem.
Além desses verões super atípicos, as temperaturas muito elevadas, muita chuva… isso tudo está colaborando para o aumento (de casos). Sem contar que estávamos isolados e, de repente, não estamos mais.
Como explicar os quatro sorotipos em circulação? Um deles que não era registrado no Brasil há 15 anos.
Eles vão e voltam. E, na verdade, eles sempre existirão, pois sempre vão nascer pessoas que não se infectaram ainda. São quatro sorotipos, você só pode ter dengue quatro vezes. Uma vez que você teve um sorotipo, você está protegido para sempre deste e, temporariamente, contra os outros tipos, pois eles são muito parecidos. Mas essa proteção vai diminuindo com o tempo.
É algo circunstancial. Ele (o sorotipo) pode ter entrado de novo por alguém de outro país ou de outra região que não esteja infectado. Ele volta a circular. Porque mesmo num território, vamos dizer, o Rio de Janeiro, muitas pessoas estão com dengue. Mas algumas podem não ter tido e, no ano que vem, elas podem ter.
É verdade que existe uma epidemia de dengue a cada quatro anos?
Não dá para ter uma certeza, depende de vários elementos, como a intensidade da epidemia anterior, quantas pessoas foram acometidas, da circulação do vírus.
E qual a importância da vacina?
Trata-se de uma vacina bastante eficaz. A grande dificuldade é, justamente, por não se tratar de “uma vacina”. Ela é “quatro em uma”, contra os quatro sorotipos. Hoje, do jeito que está sendo utilizada, não garante uma proteção coletiva. A vacina tem a função de proteger cada um, mas ela também tem a função de proteger a comunidade inteira. Para isso, precisamos de uma grande cobertura vacinal e, por enquanto, isso não existirá, porque temos uma quantidade limitada de doses.
De acordo com o Ministério da Saúde, até o final do ano só serão vacinadas crianças e jovens de 10 a 14 anos.
Houve um trabalho técnico muito importante de identificar quais seriam os grupos a receber primeiro as vacinas. De saber quem eram os mais vulneráveis nos grupos em que a vacina foi testada. Ela não foi testada nas pessoas com mais de 60 anos, então, embora sejam os mais vulneráveis, não podemos aplicá-la. Dentro do grupo que a gente pode aplicar, os mais vulneráveis são os mais novos.
A vacinação possibilita redução das desigualdades.
Acho isso genial, porque é uma sensibilidade do Ministério da Saúde e uma capacidade de articulação, de forma a tratar todo o cidadão como igual. Não é quem pode pagar mais, é quem tem mais direito. Vamos dar para todo mundo.
Correio Braziliense