Recursos públicos obtidos por uma ONG de Manaus (AM) criada pela secretária nacional de Mulheres do PT, Anne Moura, foram distribuídos para aliados dela em ano eleitoral e até para a presidente de uma escola de samba da capital amazonense que a homenageou, em 2024.
A ONG Instituto de Articulação de Juventude da Amazônia (Iaja) recebeu, em 2023, R$ 150 mil em verba estadual para realizar um projeto chamado Banzeiro Cultural Kurumim e Kunhatai, em dez escolas estaduais.
Até hoje, só uma escola recebeu atividades. A ONG conseguiu diz que ainda vai realizar a parte remanescente do plano de trabalho aprovado, mas o governo do Amazonas afirma que a parceria já está no momento da prestação de contas (leia mais abaixo).
O dinheiro foi viabilizado por uma emenda parlamentar do deputado estadual do Amazonas Sinésio Campos (PT), aliado de Anne Moura. Os R$ 150 mil foram usados pela ONG para contratar empresas e serviços apontados como necessários à execução do projeto.
Entretanto, a maior parte já foi gasta pela ONG, apesar de o cronograma inicial não ter sido cumprido, e a verba voltou para pessoas ligadas à própria entidade. Documentos obtidos pelo jornal O Estado de São Paulo mostram a triangulação dos recursos.
Do total, foram usados, por exemplo, R$ 22,2 mil para contratar, em 8 de fevereiro de 2024, uma pequena empresa que forneceria lanches durante as ações. No mesmo dia em que recebeu o pagamento da ONG, a dona da empresa de lanches fez duas transferências via Pix de R$ 5 mil, cada. Uma delas foi para Lilian Cassia de Mello, presidente da escola de samba Mocidade Independente do Coroado.
O enredo da escola de samba de Lilian, no ano passado, foi “O Coroado traz Anne Moura: A icamiaba, filha desse chão!”. A presidente da agremiação, no grupo de acesso do carnaval de Manaus, recebeu o Pix seis dias após o desfile.
Anne Moura foi homenageada quando já estava em pré-campanha para vereança em Manaus. Ela recebeu R$ 428,4 mil do PT para a campanha, mas só conseguiu 2.399 votos e não foi eleita.
No evento realizado na única escola atendida até agora pelo Banzeiro Cultural, em junho do ano passado, Anne Moura deu palestra para estudantes ao lado de Lilian Mello, que não tem ligação oficial com o projeto, e do deputado autor da emenda.
A empresa de lanches contratada pela ONG é de Adriana Rodrigues. Ela é irmã de Marcos Rodrigues, ex-presidente da entidade. Ela declarou que fez os pagamentos via Pix porque era um pedido de Anne Moura ao irmão, que tem controle sobre a firma.
Lilian, da escola de samba, não detalhou o porquê do Pix de R$ 5 mil em fevereiro. Disse apenas que “a escola de samba sempre ofereceu lanche após todas as apresentações”, mas não respondeu se tinha algum contrato de prestação de serviços com a Adriana Rodrigues nem quais foram as apresentações contempladas com refeição. A presidente disse ainda que tem “admiração pelo Iaja” e que “nosso compromisso é com a comunidade”.
O segundo Pix de R$5 mil da empresa de lanches foi para Aline Rocha Ponchet, escolhida como coordenadora do projeto educacional. Ponchet é próxima a Anne Moura e, desde abril de 2024, também é diretora financeira da ONG fundada e controlada pela secretária do PT.
A reportagem perguntou à coordenadora o porquê de ter recebido R$ 5 mil da empresa contratada para fornecer os lanches. Ela disse que recebeu porque ela mesma viabilizaria o lanche do evento que lançou o Banzeiro Cultural na comunidade indígena.
“A empresa dela (Adriana Rodrigues) foi contratada para providenciar lanche, coisas assim. Então, esse valor que ela me repassou foi para custear o lanche em uma atividade ribeirinha que nós fizemos”, disse.
Entretanto, o Pix é de 8 de fevereiro. O evento de lançamento foi em 28 de abril, mais de dois meses depois. A informação está na página oficial do projeto Banzeiro Cultural no Instagram, que tem 73 seguidores. A reportagem apresentou a incoerência à coordenadora, mas ela não se manifestou mais.
Coordenadora do projeto não sabia qual foi a escola atendida
A reportagem também perguntou a Aline Ponchet, escolhida como coordenadora do projeto Banzeiro Cultural, na sexta-feira, 7, quantas escolas foram contempladas pelo projeto custeado com verba pública. Ela respondeu que duas, mas que não lembrava quais. “Não sei te informar agora. Não tenho o nome de escola agora”, afirmou.
Ela se comprometeu a enviar planilhas e cronogramas, mas não fez. No dia seguinte, por escrito, a reportagem pediu novos esclarecimentos. Ela respondeu dizendo que, na verdade, o projeto realizou duas atividades. Primeiro, o lançamento, em uma comunidade indígena, em abril. Depois, uma ação na escola estadual Dep. Josué Claudio de Souza, em junho.
A maior parte dos recursos da emenda recebida pela ONG Iaja foi destinada a uma outra empresa, a Y Criativa, de Alessandra Reis, outra pessoa próxima da secretária do PT. A firma recebeu, no início do ano passado, R$ 97,2 mil para disponibilizar equipe técnica, artistas, assessoria de imprensa, serviços de fotografia e filmagem, som, palco, dois notebooks e dois projetores.
Desse dinheiro que recebeu da ONG, R$ 16 mil voltaram para a conta da coordenadora da ONG Aline Ponchet, em janeiro de 2024. Três meses depois, ela virou diretora financeira do Iaja.
A Y Criativa também subcontratou mais duas pessoas que à época já eram ligadas à organização, Ravi Veiga e Marcos Rodrigues, com salários menores, de R$ 2 mil e R$ 2,5 mil. Na época, os dois eram ligados a Anne Moura e participavam de atividades públicas com ela.
Questionada sobre o serviço prestado até agora, Alessandra Reis deu uma informação diferente da coordenadora. Segundo a empresária, três escolas, e não uma, receberam atividades do Banzeiro Cultural. Ela disse que as ações culturais foram interrompidas porque o ano eleitoral impedia ações em escolas.
“As atividades foram executadas dentro do que me foi pedido. Eu sou empresa, estava prestando serviços para o Iaja. O projeto ainda está em execução. Vai terminar, salvo engano, em abril. Serão dez escolas. Já foram executadas três escolas. Foram três por conta dessa questão de ser um ano eleitoral e não poder ser executado enquanto isso” afirmou.
Ela admitiu que parte dos R$ 97 mil que recebeu foram usados para pagar pessoas ligadas à própria ONG que a contratou. Ela avalia que a ideia “não é normal”, mas que foi orientada pelo Iaja e pelo jurídico a agir dessa forma.
“Marcos foi contratado como assistente de produção. A Aline, como coordenadora. Ela faz parte do Iaja há muito tempo, já. É amiga do Marcos, inclusive. Foi indicação dele mesmo”, disse Reis. “Não é normal, para mim não é normal [subcontratar pessoas da própria ONG]. Mas ele chegou para mim e disse que fez um projeto e que precisava que eu executasse. ‘Eu vou ficar como coordenador’. Eu não concordei, porque não estava certo. Perguntei para o meu jurídico, que disse que ele poderia ser assistente de produção”, complementou.
Marcos Rodrigues admite que, como líder formal da entidade, ele era o responsável por operar desvios de recursos e de finalidades de editais em benefício do grupo político liderado por Anne Moura. Ambos romperam em dezembro e ele foi desligado da ONG por Anne e Aline Ponchet.
Agora, ele está fazendo uma série de denúncias sobre irregularidades no comitê e na ONG que teriam sido cometidas por ele mesmo em benefício do grupo político. Anne Moura diz que o ex-aliado praticava assédio moral e cometia irregularidades sozinho.
“Ela (Anne) me usou para desviar o recurso. Não estou te falando isso para dizer que não sabia de nada, que sou um ‘alecrim dourado’. Não sou. Eu sabia de tudo o que estava acontecendo, mas fiz porque tinha um comprometimento político. Quando eu vi que ela estava sendo filha da p… comigo, resolvi entregar tudo”, afirmou à reportagem.
Ainda segundo ele, a maior parte da emenda e do repasse para a Y Criativa foi usada para o caixa da escola de samba que homenagearia Anne Moura.
“Da emenda do deputado Sinésio, eu fiz a transferência para a empresa parceira da Anne, a Y Criativa, de publicidade. Essa produtora foi contratada para desviar o recurso da emenda parlamentar e direcionar para o carnaval da escola Mocidade Independente do Coroado. Existe uma rede de corrupção. Existem CNPJs ligados a Anne Moura”, afirmou.
Ele formalizou denúncias sobre práticas dele mesmo e do grupo à secretaria de Cultura do governo do Amazonas e ao Ministério da Cultura.
Às vésperas da campanha de 2024, o Iaja ainda fez mais duas despesas não compatíveis com o percentual do projeto entregue até agora, em uma única escola.
Em 30 de abril, alugou um carro por 34 dias, a um custo de R$ 5,6 mil. Na descrição da fatura de locação, registrou que a despesa serviria para “dez visitas técnicas, um lançamento de projeto nas escolas, dez caravanas de cultura e para a pré-produção do Festival Banzeiro Cultural”. Além disso, pagou, em agosto de 2024, 791 litros de combustível a um custo total de R$ 5,4 mil.
Por escrito, a coordenadora do projeto declarou que as despesas com carro e combustível se deram no “período que retornamos com as visitas nas escolas para continuação do projeto, pois o prazo finalizaria em outubro, por estar em período eleitoral as escolas não aceitaram a continuidade do projeto o que nos levou a solicitar um pedido de aditivo de tempo para o término da execução”.
“Reafirmo que nunca houve descontrole pela parte do Iaja na utilização do dinheiro público, todas as despesas realizadas pela instituição estão documentadas e serão prestadas contas conforme as regras do convênio”, afirmou a coordenadora do projeto e diretora da ONG.
Conforme o plano de trabalho apresentado, o resultado esperado era atender 1.514 alunos em três etapas do projeto. Entre os objetivos, “oferecer atividades culturais com a finalidade de promover e estimular a criatividade, produção artística, conhecimentos e práticas educativas, no intuito de diminuir os índices de evasão, repetência, bullying e violência escolar”.
Projeto foi prorrogado duas vezes e deputado diz que execução não cabe a ele
O deputado estadual Sinésio Campos (PT-AM) disse que o controle sobre o uso dos recursos de sua emenda é feito “pelos órgãos competentes, como a Secretaria de Cultura do Amazonas e o Tribunal de Contas do Estado”. Em nota, a equipe dele registrou que o deputado “não tem qualquer envolvimento na execução do projeto, cabendo exclusivamente aos órgãos responsáveis acompanhar e fiscalizar a destinação dos valores e a conformidade dos gastos”.
“O papel do parlamentar se restringe à indicação da emenda para fomentar ações culturais, sendo a gestão e a prestação de contas de inteira responsabilidade da entidade executora e dos órgãos fiscalizadores”, disse por meio de sua assessoria.
“A transparência e o uso correto dos recursos públicos são princípios que o deputado sempre defendeu em sua trajetória, e qualquer dúvida sobre a execução do projeto deve ser esclarecida pelos responsáveis diretos pela sua implementação”, acrescentou.
A Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do governo do Amazonas informou que o termo de fomento com a ONG Iaja para o Banzeiro cultural está no segundo aditivo de prazo e que a entidade tem até abril para prestar contas. Entretanto, a pasta registrou que o projeto “permanece vigente”, sem esclarecer consequências da não execução do projeto até agora.
Encerrado em julho de 2024, a parceria foi prorrogada até outubro de 2024. Houve uma nova prorrogação por três meses, portanto, até janeiro de 2025. A ONG tem mais 90 dias para prestar contas, caso não haja nova prorrogação. O governo do Amazonas não informou se haverá nova prorrogação.
A secretária nacional do PT, Anne Moura, não respondeu as perguntas sobre sua participação no projeto e sobre os gastos da iniciativa. Disse somente que o “nepotismo” de Marcos Rodrigues, no caso da subcontratação da irmã, foi “uma das práticas” que levaram o Iaja a destituir o presidente.
Anne Moura aparece em uma reunião gravada dizendo que o Ministério da Cultura deu aval à utilização do Programa Nacional dos Comitês de Cultura (PNCC) em campanhas eleitorais de aliados em 2024. Ela diz que as colocações podem ter sido retiradas de contexto e que seu ex-aliado está em campanha para macular a imagem dela.
Vinícius Valfré/Estadão