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Herdeiros da rainha do mar: a gratidão do povo baiano a Iemanjá

Joana Flores realiza seu ritual de agradecimento já nas primeiras horas da manhã | Foto: Chico Brito | Arquivo Pessoal

Todo ano, no dia 2 de fevereiro, o mesmo ritual: a entrega das flores, do perfume, do amor, e mais um ciclo de gratidão é renovado. É assim para o senhor José Raimundo Chaves, conhecido como Pai Pote, de 54 anos, que há quatro décadas sai de sua terra natal, em Santo Amaro, no Recôncavo baiano, para reverenciar Iemanjá em Salvador. Ainda criança, o babalorixá do terreiro Ilê Axé Oju Onirê, nascido em berço candomblecista, era levado para a festa pelos mais velhos. Hoje, é ele quem leva seus companheiros de axé para os festejos daquela que considera a mãe de todos os orixás.

“Iemanjá é mãe. Ela é a mãe de todos os orixás de qualquer terreiro, de qualquer nação. Ela é dona do ori, ou seja, da cabeça. É ela quem nos orienta e é o equilíbrio da nossa mente. E essa é uma das festas mais importantes para nós porque fortalece o povo negro e a nossa religião como força de resistência e luta”, pontuou o líder religioso, que se divide, na mesma data, entre as homenagens santamarenses à Nossa Senhora da Purificação e a comemoração a Iemanjá na capital.

Pai Pote participa da Festa de Iemanjá há mais de 40 anos | Foto: Giovane Vasconcellos | Arquivo Pessoal

A relação de amor do Pai Pote com o momento sagrado dos festejos de fevereiro vai além do culto à orixá das águas e abrange também os cuidados com a preservação da vida marinha. Na composição das tradicionais oferendas, ele tem adotado a prática do “presente ecológico” há cinco anos, dando preferência ao uso de materiais biodegradáveis ou que não ofereçam risco de poluição para os peixes.

“É importante para o povo de terreiro falar da ecologia e do mar, porque a gente trabalha com as forças da natureza. Então, temos evitado objetos que possam poluir as águas e matar os peixes. Temos usado alimentos. Não colocamos mais bonecas, vidros de perfume, nem espelhos. Para nós, Iemanjá é o próprio peixe. Ela é tudo”, destacou.

Ritual em família

Participante assídua da festa, a museóloga Joana Flores, de 52 anos, considera a ida ao Rio Vermelho em família como parte do seu ritual de agradecimento. Filho, nora, namorado e amigos fazem companhia ao processo de entrega de rosas no mar, que começa nas primeiras horas da manhã do dia 2. Entre os agradecimentos, a festa deste ano terá uma motivo de gratidão a mais: o nascimento do primeiro neto.

“Neste ano, vou agradecer pela chegada de Ben e por tudo o que eu tenho. Sou muito de agradecer. Vou pedir discernimento para os governantes e que o nosso povo esteja muito atento e unido para o processo de transformação que o nosso país está precisando”, explicou a soteropolitana, acrescentando que, mesmo quando morou fora da Bahia, não deixou de fazer seus pedidos a Iemanjá.

Joana, que atua na área de preservação de bens culturais, destaca que a festa de Iemanjá é uma das grandes riquezas herdadas pelos baianos, e que isso torna todos não só pertencentes a esse movimento religioso, como também responsáveis por sua guarda e permanência. Para ela, o culto integra uma relação com a história africana no Brasil partilhada entre o povo negro, como uma continuidade do legado de seus ancestrais.

“O 2 de fevereiro tem toda uma importância, não apenas por ser uma festa popular, mas pelo próprio caráter religioso. Mesmo não sendo de axé, eu acho que todos nós brasileiros, negros e negras, reverenciamos Iemanjá quando compreendemos essas forças sagradas como parte da nossa história. O que fazemos nesse dia é dar continuidade ao que nossos e nossas ancestrais trouxeram. A gente tem uma obrigação de prosseguir com esse legado. Com a participação popular é que as manifestações culturais tendem a não se perder”, afirmou.

Crença nas águas

A gratidão do povo baiano em relação a Iemanjá elevou os festejos do 2 de fevereiro ao patamar de Patrimônio Cultural de Salvador. Neste sábado, 1º, a festa, que teve sua origem no início dos anos 1920, terá seu nome inscrito no ‘Livro do Registro Especial dos Eventos e Celebrações’, por meio da lei 8.550/2014, durante um ato solene na Colônia de Pescadores, no Rio Vermelho.

Responsável pelo laudo etno-histórico da festa para o processo de registro patrimonial, a doutora em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Cristiane Sobrinho, explica a que a forte relação popular com a festa nasce das crenças sagradas nas águas. A estudiosa ressalta que, conforme publicações de Pierre Verger e de outros pesquisadores, a ligação de Iemanjá com as águas vem de sua origem iorubá, na Nigéria, entre Ifé e Iabadan, na região do rio Yemonjá. No Brasil, a representação do orixá a adquire a associação com o mar e com quem se relaciona com ele.

“Iemanjá é a orixá africana mais popular do Brasil. Todas as populações ribeirinhas, marítimas ou que lidam com as águas são povos que tem o contato muito forte com a espiritualidade ou com as crenças relacionadas às águas. Esse repeito ao mar se estende por todos os que estão próximos às essas regiões. Iemanjá é uma entidade que vai ser transportada com a vinda das pessoas escravizadas para o Brasil. Originalmente, ela é uma orixá do rio, e nessa passagem ela ganha a dimensão do mar”, pontuou.

A antropóloga aponta que as manifestações de fé no dia festivo acontecem das mais variadas formas e que não é possível estabelecer rótulos ou definições quanto ao público participante. “É uma festa múltipla. Há pessoas que estão ali sem um vínculo direto com religião. Também vemos manifestações em forma de sereismo e de outras expressões que não têm, necessariamente, uma relação com o candomblé. Há também pessoas que participam por causa da festa, da folia. E, por fim, há os fiéis do candomblé, que estão ali pelo orixá, pelo laço sagrado”, concluiu.

*Sob supervisão da editora Thaís Seixas

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