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Instituições baianas preservam um patrimônio documental e bibliográfico de valor inestimável

Capital do Brasil até 1763, quando a corte portuguesa transferiu o centro de poder na colônia para o Rio de Janeiro, Salvador acumulou nas gavetas de seus casarões do período colonial registros essenciais de como era a vida na Terra Brasilis ao longo dos séculos.

Uma das primeiras instituições a reunir parte desses documentos em um arquivo foi a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, fundada juntamente com a cidade, em 1549, em um casarão de taipa, onde hoje funciona o Museu da Misericórdia, próximo à Praça da Sé.

No século 17, quando a cidade era a maior aglomeração urbana do país, a Santa Casa já produzia documentos que comprovavam a sua posse de imóveis. Com o passar do tempo e a expansão das suas atividades, como o monopólio dos sepultamentos, a instituição começou a formar um arquivo que hoje serve de base para pesquisadores de diversos países, interessados, por exemplo, em detalhes sobre africanos escravizados no Brasil.

Além da Santa Casa, há quase uma dezena de instituições baianas que oferecem farto material de pesquisa sobre como os baianos e os brasileiros têm vivido ao longo desses séculos.

O Mosteiro de São Bento, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, o Orfanato de São Joaquim, o Arquivo Público do Estado da Bahia e o Arquivo Histórico Municipal são alguns dos principais centros de pesquisa no estado.

O Cedic, que funciona na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira, teve a sua instalação, há 10 anos, vinculada à trajetória pessoal de um pesquisador.

Em 1998, o então estudante de história Paulo de Jesus Lima encantou-se com as instalações e o acervo do Centro de Documentação e Informação Cultural (Cedic), uma unidade de pesquisa que funcionava na rua Miguel Calmon, no Comércio, e que era mantida pela Fundação Clemente Mariani, instituição ligada ao Banco da Bahia que desenvolvia e apoiava projetos na área de educação.

Durante mais de duas décadas, a mesma bibliotecária, Graça Catalino, encarregava-se de procurar o livro que o pesquisador necessitava e o encaminhava para uma mesa específica, onde a obra ficava disponível para sua consulta durante uma semana, sem que outra pessoa pudesse acessá-la para não atrapalhar a pesquisa.

Consulta pública

Paulo começou a frequentar tanto o Cedic que acabou sendo contratado pela fundação para coordenar o espaço, cargo que ocupou até 2006, quando foi aprovado em concurso público para professor de história da Bahia na emergente Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Quatro anos mais tarde, quando a Fundação Clemente Mariani decidiu encerrar suas atividades e abriu consulta pública para instituições interessadas em manter o acervo do Cedic, diferentes instituições se manifestaram.

Paulo, que conhecia muito bem o material que estava sendo oferecido, elaborou um projeto a quatro mãos com o historiador Walter Fraga e conseguiu levar o acervo para o Centro de Artes, Humanidades e Letras da UFRB, em Cachoeira. Em 22 de março de 2011, documentos e mobiliário cedidos pela fundação chegavam à nova universidade.

O professor credita a preferência que foi dada à UFRB às instalações adequadas de uma instituição de ensino superior que recém-começava suas atividades, ao texto de apresentação feito pelo seu colega Walter Fraga e ao compromisso de que o acervo seria indissolúvel.

Vasto material

Entre os documentos disponíveis no Centro de Documentação e Informação Cultural (Cedic) consta um vasto material sobre a criação, em 1937, no bairro de Nazaré, do Serviço de Transfusão de Sangue (STS), o primeiro da região Nordeste, criado pelos médicos Menandro Novais e Estácio Gonzaga, com base na experiência de um banco de sangue surgido em Barcelona durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

“É um momento em que se pensa a saúde pública. E a gente está vivendo esse momento agora”, diz Paulo Lima, sobre a importância do acervo pessoal de Menandro Novais, que integra o Cedic.

No total, o arquivo conta com cerca de 35 mil itens, sendo que 26 mil destes estão catalogados na base de dados do Cedic. São livros dos séculos 19 ao 21, periódicos, manuscritos, microfilmes, literatura baiana do século 20 e algumas teses da antiga Faculdade de Medicina, a primeira do país.

O material está dividido em coleções: material de referência (anuários e guias), especial (livros raros de edição única), acadêmicos (livros de integrantes da Academia de Letras da Bahia), contemporâneos (livros publicados após 1990), CDs com arquivos do período colonial, arquivos pessoais doados por personalidades baianas e uma pequena coleção sobre a história da África.

Séculos

Mesmo após ter perdido para o Recôncavo esse importante acervo da Fundação Clemente Mariani, a primeira capital do Brasil conta com importantes conjuntos de documentos que são referência para a compreensão de momentos históricos da cidade, do Brasil do período colonial e até de outros países, como Portugal e Holanda.

Arquivos mantidos por órgãos de governo, universidades e instituições filantrópicas da velha Cidade da Bahia ajudam a contar mais de cinco séculos de história, desde que os portugueses desembarcaram no sul da Bahia, em 22 de abril de 1500.

Uma das maiores novidades na área é que a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo anuncia para o ano que vem uma nova sede para as instalações do Arquivo Histórico Municipal de Salvador e seus mais de quatro milhões de documentos.

O titular da secretaria, Fábio Mota, estima que ainda no primeiro semestre de 2022 esse acervo deve ser transferido para o Comércio, onde está sendo construído o Centro de Interpretação do Patrimônio, que inclui A Casa da História e a nova sede do Arquivo, um prédio de 11 andares que está sendo erguido no fundo do Casarão dos Azulejos, onde está sendo instalado o Museu da Música.

“A gente já tem essa vocação de cultura, isso fortalece ainda mais nossa estratégia de preservação do patrimônio histórico e cultural da cidade”, diz Mota

Pelo cronograma da prefeitura, os documentos do arquivo devem estar digitalizados até fevereiro do próximo ano. A partir daí, será possível fazer intercâmbio de arquivos digitais com arquivos portugueses e holandeses, que mantêm documentos referentes à presença desses países no Brasil durante o período colonial. Ao mesmo tempo, essas instituições podem receber cópias digitais dos registros da Invasão Holandesa à Bahia, por exemplo. “Esse intercâmbio vai reconfigurar e completar a nossa história”, aposta o secretário. O objetivo do poder público municipal é transformar Salvador em uma referência na preservação de patrimônio e atrair para a cidade mais pesquisadores e interessados.

Memória do mundo

Além do próprio Arquivo Municipal, o Centro de Memória Jorge Calmon da Santa Casa de Misericórdia , a Polícia Militar do Estado da Bahia, o Mosteiro de São Bento e o Arquivo Público do Estado da Bahia mantêm coleções históricas que, por seu valor e raridade, integram o programa Memória do Mundo da Unesco.

São livros, documentos e fotografias que ajudam a explicar passagens históricas que moldaram o mundo em que vivemos, como a escravização de seres humanos trazidos da África e os processos migratórios voluntários entre a Europa, a África e o Brasil.

Salvador, que foi capital desde a sua fundação em 1549 até 1763, detém uma vasta documentação sobre o enterro de pessoas de origem africana em covas rasas – no período colonial, os brancos eram enterrados nas igrejas – e registros de entrada de europeus no país que até hoje servem como base para processos de pedidos de cidadania por descendentes de portugueses, espanhóis e italianos.

A diretora do Arquivo Público, Tereza Matos, ressalta, entre os mais de 40 milhões de documentos existentes na instituição, os conjuntos que fazem parte do Programa Memória do Mundo, como os registros de entrada de passageiros pelo Porto de Salvador, de 1855 a 1964. “Essa documentação é de interesse de cidadãos que buscam a dupla nacionalidade”, afirma.

Ela também cita os papéis do Tribunal da Relação do Brasil, uma espécie de segunda instância do poder judiciário que Portugal instalou em Salvador em 1609, a exemplo dos que existiam em Lisboa e Goa, território português na Ásia. O Arquivo tem documentos desse tribunal no período de 1652 a 1822, ano da Independência.

Um dos arquivos particulares mais importantes de Salvador está no Arquivo Público do Estado da Bahia. Trata-se da documentação referente à Companhia Empório Industrial do Norte, montada no final do século 19 na Cidade Baixa por Luís Tarquínio, um autodidata, filho de ex-escravizada, que começou a trabalhar varrendo chão de fábrica e criou o maior complexo têxtil do país na época. Também construiu uma vila operária nas proximidades da tecelagem e foi pioneiro na adoção de benefícios trabalhistas, como a licença-maternidade.

Com um acervo que começou a ser montado no século 17, o arquivo histórico da Santa Casa de Misericórdia, batizado recentemente como Centro de Memória Jorge Calmon, inaugurou no último dia 24 de junho o site da instituição, com todo o seu material digitalizado (centrodememoriasantacasaba.org.br).

“Eu brinco que a Santa Casa fazia backup desde o século 18”, diz Rosana Souza, coordenadora do centro. Quando o escrivão percebia que os livros de acórdão não estavam em bom estado, ele fazia uma cópia e preservava o original. Livros de acórdão são documentos que registram as decisões das reuniões da mesa e junta administrativa da Santa Casa.

“Hoje temos um acervo de mais de 1.800 livros e centenas de documentos avulsos sobre todas as atividades exercidas pela instituição desde o século 17”.

Filhos

Rosana compara a sua relação com os documentos com o modo como uma mãe trata os filhos. “A gente finge que não tem um preferido”, brinca, ao destacar uma obra que foi referendada pela Unesco como Memória do Mundo. É a coleção dos livros de banguê, que traz o registro de sepultamento de pessoas escravizadas. Banguês era o nome dado às esquifes que transportavam aqueles corpos até o

sepultamento.

No período colonial, a Santa Casa de Misericórdia era a única instituição autorizada a fazer sepultamentos. Enquanto os brancos eram sepultados em igrejas, os cadáveres de negros escravizados eram enterrados em cova rasa no Cemitério do Campo da Pólvora, administrado pela Santa Casa, que funcionou até o século 19.

A peculiaridade dos livros de banguê é que são 11 unidades que registram sepultamentos de escravos no período de 1742 a 1853, com o nome do falecido, a etnia africana a que ele pertencia, o nome do barco em que viajava, no caso de morte durante a travessia, e o valor pago pelo senhor de escravos à Santa Casa pelo serviço de sepultamento. Além da reprodução da marca que a pessoa escravizada levava no corpo como símbolo do senhor proprietário.

“A Unesco tem esse registro de Memória do Mundo para coleções que tenham raridade e relevância para o estudo da formação cultural brasileira”, destaca.

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